No ano passado, quando comecei essa coluna na revista Claudia e escolhi chamá-la de Pausa, não imaginei que, em poucos meses, seria eu quem precisaria fazer uma pausa forçada. A coluna era uma proposta de refletir sobre o modo apressado que vivemos, buscando caminhos para questionar e resistir, um pouco que seja, à aceleração cada vez mais intensa, à sobreposição de tarefas e à fadiga que acompanham as formas de viver e de trabalhar no mundo contemporâneo.
A ideia da coluna era, ainda é, pensar sobre essas questões tão desafiadoras com o apoio de livros, filmes e séries, fazendo isso num ritmo mais lento, chegando assim a algo que, quem sabe, oferecesse um pouco de respiro e fôlego. Que eu pudesse me deter aqui em um tema como quem contempla o vai e vem do mar num fim de tarde na praia, ou as nuvens que vão se formando em volta das montanhas. Ou, ainda, que fosse um pouco como os gatos que se esticam no sol, buscando qualquer brecha de luz e calor para aquecer seus corpinhos, com uma sabedoria que não é a que nos ensina, racionalmente, a ciência sobre a importância da vitamina D e dos momentos de descanso. E, ao observá-los, testemunhamos um bem-estar que quase já não conhecemos mais: o de quem se entrega à inteireza do instante presente, de quem continua sendo um corpo sensível e integrado, que encontra bolhas de tranquilidade em meio ao barulho das nossas rotinas.
Foi assim que, junto com a jornalista Isabela Discacciati, autora dos ótimos perfis @clubeferrante e @passeiosemveneza no Instagram, começamos uma jornada em dupla: a de assistir, semana a semana, cada uma em um continente, a um novo episódio da segunda temporada da série The White Lotus, de Mike White. O que não poderíamos imaginar então é que essa temporada acabaria se tornando uma febre angariando prêmios e mais prêmios, do Globo de Ouro ao SAG Awards, além de ter inspirado memes divertidos, que seguem circulando pela internet — sucesso de crítica e público, uma infiltração rara na cultura popular. Claro que as lindas locações da Sicília, no Sul da Itália, ajudaram a seduzir espectadores, assim como o suspense irresistível que se coloca logo nas primeiras cenas.
A premissa parte de um elemento clássico do gênero: um grupo de pessoas se reúne numa ilha paradisíaca, enquanto a tensão se espalha por cada entrelinha. São personagens que fazem uma pausa — uma semana de férias em um hotel luxuoso à beira mar —, mas arrastam consigo dramas e conflitos pessoais, companhias persistentes. E cada uma dessas pessoas parece ter segredos ou contradições.
Atmosfera perfeita para desenrolar algo que foi anunciado desde o início: sabemos que o resultado desses dias supostamente idílicos foi fatal. Não apenas um corpo aparece boiando na praia, mas outras mortes se somam à primeira. O que não sabemos, até o episódio final, é quem morreu e quem matou. E, mais importante para uma boa história, como isso foi acontecer.
Embora os enigmas peguem de jeito quem assiste à série, o que parece ter encantado de verdade grande parte do público e da crítica é o exame impiedoso que Mike White, criador da série, faz das relações humanas e dos arranjos sociais, o olhar apurado para as pequenas e grandes disputas de poder que permeiam essas interações e a possibilidade de acompanhar cada personagem na intimidade de seus quartos, em suas conversas mais honestas, protegidas da esfera pública implacável.
São casais e famílias viajando juntos, amigas que compartilham a vida há anos, trabalhadores de um hotel às voltas com bastidores menos luxuosos. Não temos acesso apenas à parte de nós que está disponível nas redes sociais, mas a camadas que, em geral, editamos ou recalcamos num mundo cada vez mais exigente sobre o que seria considerado virtude e o que seria motivo de linchamento coletivo.
Isabela e eu, que compartilhamos outras afinidades e obsessões, assistimos aos sete novos episódios, que foram ao ar aos domingo na HBO por quase dois meses. Ela, que vive na Itália e conhece bastante de história da arte e cultura italiana. Eu que, como psicanalista, fico admirada com o tratamento que Mike White dá às ambivalências humanas e às contradições sociais, sem recorrer a esquemas morais gastos e precários, entremeando suspense, drama e humor de qualidade.
Nós duas tivemos longas conversas sobre as cenas que mais nos marcaram, examinamos cada referência que conseguimos encontrar, falamos sobre quantas relações de intertextualidade pudemos identificar — e fizemos essas pesquisas tão a fundo quanto a ocasião nos permitiu. Não estávamos escrevendo uma sequência de tuítes, um post no Instagram ou uma única resenha num jornal ou revista. Foi uma breve, mas profunda, imersão.
A revista CLAUDIA aceitou nos acompanhar nessa jornada e publicou o que chamamos, de forma talvez ambiciosa, mas para nós bem humorada, de Dossiê White Lotus. É possível ler a primeira e a segunda parte nessa coluna. Escrevê-los ao lado de uma amiga querida, de uma colega que admiro e com quem tenho sempre algo a aprender, foi uma experiência no mínimo divertida. Tenho a impressão de que, no mundo atual, dedicamos pouco tempo às nossas obsessões de estimação e facilmente as trocamos por outras, num ritmo vertiginoso. Cada dia traz consigo o assunto da vez. Mas Isabela e eu somos mais lentas. Passamos bastante tempo fixadas em temas que nos convidam a olhar mais de perto.
Por exemplo, estamos lendo e relendo a obra da escritora Elena Ferrante há anos, buscando nos aprofundar nos mitos clássicos a que ela se refere — e que também aparecem em The White Lotus —, além das múltiplas relações que Ferrante estabelece com a literatura e com a cultura. Foi isso me levou ao meu mestrado, concluído em 2019 e, um ano mais tarde, ao livro Elena Ferrante, uma longa experiência de ausência, publicado pela editora Claraboia. Já Isabela compartilha conteúdos muito instigantes no seu perfil @clubeferrante (tem novidade vindo aí, espero poder compartilhar em breve), depois de ter feito um guia de Nápoles para a editora Intrínseca, que acompanhou o lançamento do romance A vida mentirosa dos adultos, também de Ferrante, para quem era assinante do clube da editora.
Agora, não contente com o que já escrevemos nas parte 1 e parte 2 do nosso dossiê sobre a série, estávamos trabalhando em um fechamento, quando falaríamos da mistura de referências tão improvável que aparece no trabalho de Mike White, que vai do teatro e grandes clássicos da literatura aos reality shows da televisão, assim como do elenco italiano, tão bem escalado, e de outras obras de arte (literatura, cinema e música, por exemplo) com as quais The White Lotus dialoga de forma riquíssima. Foi quando fui atropelada por uma condição delicada de saúde, talvez a mais difícil que já vivi: um quadro neurológico alarmante, do qual estou me recuperando, e que me obrigou a interromper o processo e me distanciar de quase todas as atividades, inclusive as que mais me deixam contentes, como a escrita dessa coluna.
Passei alguns dias hospitalizada, lidando com hipóteses diagnósticas graves e assustadoras, enfrentando uma série de exames difíceis, alguns bem invasivos, e estive, por um período, com uma significativa limitação intelectual, por conta do próprio quadro neurológico, bem como das medicações para tratá-lo. Quando, enfim, tive condições de começar a retomar meus compromissos, quis muitas vezes voltar a esse projeto e terminar de escrever a terceira parte com a mesma dedicação de antes, mas meu corpo havia se tornado frágil e vulnerável e podia tão pouco, que parecia ter como único trabalho a sobrevivência.
A vida nos confronta constantemente com as nossas limitações e, a nós, resta acomodar essas faltas e frustrações como for possível. Volto dessa viagem estranha com dois lemas, ambos oferecidos por amigas escritoras: Renata Belmonte, que me enviou flores e um cartão com uma frase de Guimarães Rosa: “viver é um rasgar-se e remendar-se”. Estou trabalhando no meu remendo. E Juliana Leite, numa conversa, disse algo também roseano, “recuperar o corpo é sempre comprido”. Ela tem razão.
Recebi tanto apoio de outras amigas queridas, visitas, mais flores, tortas, chocolates, presentes, tanto carinho delas e da minha família próxima, assim como de colegas de trabalho, que sinto que seria impossível agradecer a cada gesto. Mas gostaria de contar aqui que esse afeto de fato tornou o caminho menos árduo.
Nos momentos melhores, como já contei, voltava a pensar nessa coluna, e em como não queria deixar o trabalho que Isabela e eu começamos sem um fechamento. Mas parte das complicações do quadro que enfrentei, e do qual acredito estar me recuperando, foi a impossibilidade de ler e de escrever, por conta da perda parcial e temporária da visão, acompanhada de dores de cabeça incapacitantes e de certa confusão mental que me tirou mesmo do eixo. Aos poucos, estou voltando. Hoje, me arrisquei a escrever essas linhas, sabendo que estou longe da minha melhor forma, mas apostando que esse texto pode ser um retrato sincero desse momento instável.
Então, para não deixar quem leu as partes iniciais do dossiê sem uma conclusão, resolvi compartilhar aqui dois podcasts sobre o tema, um que gravei a convite de Marcela Ceribelli, o Bom dia, Obvious (escute aqui), e outro que vai fazer parte da nova temporada do podcast Meu Insconsciente Coletivo, com Tati Bernardi, da Folha de S. Paulo, e deve sair em breve. Enquanto isso, dá para ouvir os episódios anteriores — já participei antes falando da tetralogia napolitana de Ferrante aqui.
É um outro formato, com outras interlocutoras, mas com certeza o trabalho que Isabela e eu fizemos para a CLAUDIA funcionou como base para essas novas conversas. E essas experiências me fizeram pensar no tema da vulnerabilidade. No episódio do Bom dia, Obvious, por exemplo, ao falar de Tanya (Jennifer Coolidge), a grande sensação da série, em algum momento disse que a personagem não sabia nadar. Falei isso com a convicção tola que tantas vezes nos toma, quando se trata mais de uma interpretação, extrapolando os elementos concretos, do que de informações reais.
Ao rever a primeira temporada, não consegui encontrar nenhuma cena que endossasse minha afirmação. E entendi que talvez fosse mais uma impressão minha do que qualquer dado que a série traz. Diferentemente de seus colegas de hotel, Tanya nunca está nadando na piscina, nem fazendo um mergulho no mar — ela sequer aparece em trajes de banho, destoando da maioria das pessoas à sua volta. Daí para a conclusão de que ela não saberia nadar ou, no mínimo, que não se sentiria à vontade na água, foi um salto meu. Isso me fez pensar na defesa que Umberto Eco fez da primazia da subjetividade e da interpretação diante de uma obra, algo que mais tarde ele mesmo repensou, oferecendo contrapontos, quando escreveu Os limites da interpretação.
É um erro que não chega a atrapalhar a conversa divertida que tive com Marcela no podcast, mas me fez pensar em outros temas que essa coluna pretende continuar a explorar: as nossas muitas limitações. Ao escutar o episódio e me dar conta, pensei em como é importante, ao analisar uma obra, que voltemos a ela muitas vezes, desconfiando de nossos vieses, num esforço de mais objetividade, ainda que essa seja uma tarefa impossível.
Mas também preciso admitir que gosto da ideia de que, nos podcasts dos quais participei, ao contrário do processo de escrita, não é possível revisar inúmeras vezes antes de tornar algo público. Ainda que façamos pesquisa e anotações prévias, é preciso tantas vezes falar de improviso. Essa espontaneidade que tais conversas podem provocar tem me interessado bastante e, por isso, comecei algo que consideraria impensável há dois ou três anos: um podcast sobre livros, filmes e séries com outra amiga escritora, Liliane Prata, que, inclusive, já foi editora da CLAUDIA. Estamos indo para o nosso terceiro episódio e tem sido um presente poder fazer uma pausa, uma vez por mês, para sentar diante de uma interlocutora que gosto tanto de escutar, em um formato que também conta com a participação de pessoas convidadas.
Ouvir, falar, ouvir de novo. Estar presente de verdade, não como se fossem dois monólogos, mas sim um diálogo. Discordar, quando for o caso, sem que isso impeça a conversa de acontecer. Ao contrário: sentir que é apenas assim que ela acontece de verdade. No episódio mais recente, fizemos comentários sobre quatro filmes que se destacaram nas últimas premiações: Tár, Os Banshees de Inisherin, Os Fabelmans e Aftersun (esse último, o meu preferido). No primeiro episódio, falamos sobre A vida mentirosa dos adultos, livro e minissérie (Netflix), com a participação, adivinhem, de Isabela Discacciati. Espero que ainda façamos muitos projetos juntas.
Quando a gente encontra pessoas com quem gosta de caminhar junto na vida, são tesouros inestimáveis. Para minha sorte, essas pessoas também gostam de dividir a vida comigo e, assim, vamos juntas construindo relações de delicadeza e de presença, não importa a que distância física estejamos umas das outras. Fazendo pausas para pensar, sentir e viver todo o caos e toda a beleza de estar aqui. Vivas e compartilhando o mesmo tempo.