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@fabianesecches escreve sobre cinema, literatura e psicanálise.
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Três velhas se encontram

Mulheres extraordinárias e o envelhecimento sob um outro prisma, muito mais interessante

Por Fabiane Secches
Atualizado em 12 jun 2023, 15h26 - Publicado em 10 jun 2023, 08h08
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  • Quando li o romance Sobre os ossos dos mortos, de Olga Tokarczuk, escritora laureada com o Prêmio Nobel de Literatura, algo se acendeu em mim. Como raras vezes acontece, leitora e livro se encontraram na hora certa. Eu estava começando a minha pesquisa de doutorado na Universidade de São Paulo, mas, depois da leitura, tomei a decisão de reorientar a rota, já que algo mais forte estava me chamando — eu diria que até mesmo me convocando. Por sorte, tive a acolhida da minha orientadora, que me acompanha desde o mestrado, e seguimos juntas.

    Publicado no Brasil em 2019 pela editora Todavia, com tradução de Olga Bagińska-Shinzato, o romance de Olga Tokarczuk conta a história de uma mulher velha — a própria palavra “velha” ocupa uma posição pejorativa na nossa cultura, o que diz muito de um mundo que persegue a juventude como bem maior, ignorando a sua transitoriedade inevitável. Pois bem, essa personagem velha mora sozinha em uma vila, no meio da floresta. Como ela é a narradora do livro, acompanhamos a sua perspectiva sobre os acontecimentos, bem como os seus pensamentos, a sua sensibilidade e a sua visão sobre todas as coisas.

    Logo no início, mortes misteriosas passam a se avolumar no enredo, e entramos num romance policial, enquanto o livro é, também, uma bonita meditação sobre a vida e a morte, assim como uma comédia de erros que pode ser muito divertida de acompanhar. Mas, mais do que esse emaranhado de gêneros tecido pela autora, o que me abismou foi a ideia de habitar temporariamente a pele de uma mulher mais velha e mais livre do que eu — a maravilhosa experiência de alteridade que a literatura nos permite. Principalmente, porque a velhice, em especial a velhice feminina, é um assunto tratado com condescendência e negligência, continua sendo um tabu. Como uma afronta, um fracasso ou um pecado, se a velhice estiver desalinhada com o que se espera dela.

    A narradora do livro não é uma avó querida que faz bolos para a família, destituída de subjetividade, desejos e indignações. E, embora seja tratada de modo infantilizado pelos homens em posição de poder na região em que vive, a narradora subverte qualquer estereótipo de velhice que costumamos encontrar na vida e mesmo em algumas histórias de ficção.

    Três Velhas se encontram, por Fabiane Secches
    A autora Olga Tokarczuk. (Divulgação/Divulgação)

    A leitura de Sobre os ossos dos mortos me levou também à escrita de um ensaio publicado na antologia Depois do fim, da editora Instante. Agora, enquanto estou trabalhando no meu texto para a etapa de qualificação do doutorado, algumas coincidências felizes me acompanham. A recente publicação do romance A corneta, de Leonora Carrington, que traduzi para a editora Alfaguara, do grupo Companhia das Letras — um processo que levou anos, acompanhando a curva da minha pesquisa, já que Carrington é uma referência importante para Tokarczuk. E a chegada do livro Outra autobiografia, de Rita Lee, publicado pela Globo Livros.

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    Entre ficção e não ficção, as duas obras recém-lançadas trazem vozes de mulheres velhas, com perspectivas singulares sobre o mundo e sobre si mesmas, que também rompem com qualquer expectativa mais estreita que possamos ter sobre esse momento infinitamente complexo da vida.

    A narradora de Tokarczuk nunca nos diz exatamente qual é a sua idade, sabemos apenas que é uma mulher velha. Já a narradora de A corneta tem noventa e dois anos. O título — originalmente, The Hearing Trumpet —, faz referência a um objeto usado antigamente pelas pessoas com dificuldade de audição para concentrar o som no canal auditivo. No Brasil, ficou conhecido como “corneta acústica” ou “corneta auditiva”, provável alusão à parte auditiva do ouvido interno, também chamada de “cóclea” ou de “caracol”, em razão de seu formato.

    Mas há outros significados interessantes atribuídos à palavra “corneta” pelos dicionários, como um aparato em forma de meia-lua que as mulheres usavam para levantar os penteados. Talvez seja possível pensar nisso de forma simbólica. Nos desenhos que acompanham o romance, feitos pelo filho da autora, Pablo Weisz Carrington, a narradora sempre aparece representada com o penteado elevado, algo que lhe dá um ar de rainha, e na maior parte das vezes também está acompanhada de seu objeto mágico.

    Três Velhas se encontram, por Fabiane Secches
    A escritora e multiartista Leonora Carrington. (Leonora Carrington/Arquivo pessoal)
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    Nascida na Inglaterra em 1917, Leonora Carrington viveu na França, foi internada em um hospital psiquiátrico na Espanha, num episódio traumático, e mais tarde se mudou para o México, onde ficou até a sua morte, em 2011. Sua biografia também merece um texto à parte. Para quem se interessar, deixo a recomendação do livro Lá embaixo, relato autobiográfico do período em que ela passou internada, com ótima tradução de Alexandre Barbosa de Souza.

    As narradoras dos romances de Tokarczuk e de Carrington compartilham uma visão crítica e improvável do mundo, no sentido de que há uma ruptura na visão e na ordem esperada das coisas. A corneta faz isso mais radicalmente, já que a autora, além de escritora, foi também um dos principais nomes do movimento surrealista nas artes visuais — a capa do livro que chega ao Brasil traz uma de suas muitas ótimas e inquietantes pinturas.

    Mas, se aceitarmos o convite para adentrar a estrutura própria do livro, tudo vai se encaixando de algum modo estranho — muitas vezes de forma divertida, comovente, triste ou alegre, mas sempre tão rica. É como se a imaginação tudo pudesse, e a autora tomasse a liberdade de recolher elementos da história que conhecemos, incluindo mitos clássicos e até mesmo a Bíblia, a partir de uma mistura própria. Um caldeirão explosivo. Associar o surrealismo à voz de uma narradora de noventa e dois anos foi uma decisão poética muito inteligente.

    Rita Lee tinha setenta e cinco anos quando morreu, no mês passado, causando uma comoção nacional poucas vezes vista. Sem dúvida, foi a mais forte que testemunhei. Pessoas de todas as idades e de todas as vivências têm histórias significativas para compartilhar sobre ela e sobre as suas músicas. A notícia dessa grande perda repercutiu mundo afora e a cantora, compositora, artista multitalentosa que era, também ganhou homenagens dos principais jornais internacionais. Nada mais do que merecido.

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    Em seu novo livro, Outra biografia, Rita Lee narra com honestidade os seus últimos anos de vida, e descreve com riqueza de detalhes desde o diagnóstico do câncer de pulmão até os tratamentos aos quais foi submetida para tentar se livrar da doença — que, infelizmente, se espalhou pelo seu corpo então frágil: na ocasião, ela pesava menos de 40 quilos. Ainda assim, Rita Lee, que sempre emanou presença e força desde a juventude, faz o mesmo nesse livro que nos deixa como presente, e trata da velhice, da doença e da morte com sua sabedoria peculiar. Desde os quarenta anos, ela já falava de menopausa em entrevistas de rede nacional, antes mesmo de experimentá-la na pele, indignando-se com o recalque social em torno do tema.

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    (Guilherme Samora/CLAUDIA)

    Embora não doure a pílula e compartilhe agruras sombrias que enfrentou nos últimos anos, Rita Lee faz isso de forma tão genuína e espirituosa que torna a obra uma leitura tão difícil quanto valiosa. Para algumas pessoas, seu interesse pelo céu, pelos astros e até por vidas extraterrestres pode soar uma extravagância insensata. Já eu, sempre gostei de vê-la desafiar o antropocentrismo, segundo o qual as pessoas são a medida de todas as coisas, e apontar para uma imensidão que ressignifica a nossa importância, quer acreditemos ou não em discos voadores.

    Do mesmo modo, sua compaixão e a amizade que tinha com os animais, algo que poderíamos chamar até mesmo de devoção — o que, de certa forma, Rita Lee compartilhava com as narradoras de Olga Tokarczuk e de Leonora Carrington —, pode até ser difícil de compreender para boa parte de nós, que se esquece da própria animalidade e crê na hipótese débil da superioridade humana, no lugar de apreciar as diferentes formas de estar no mundo.

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    Mas a melhor parte é que nenhuma dessas mulheres parece se importar de verdade com julgamentos ou qualquer coerência. Ao contrário, expressam ideias transgressoras, sempre em transformação, que colocam em xeque uma racionalidade limitante, que ignora outras possibilidades e, na maior parte do tempo, diz mais das nossas limitações de perspectiva e das nossas vãs tentativas de controle. Do nosso medo do imenso desconhecido, quer seja representado pelo céu e pelas estrelas, pelos outros animais com seus universos particulares ou pela velhice e pela morte. No posfácio que escreveu para essa edição de A corneta, Olga Tokarczuk, diz algo que pode se aplicar a essas três vozes que me encantam:

    “Na velhice, a pessoa se torna excêntrica. Essa parece ser uma lei natural do desenvolvimento, uma vez que a adaptação à sociedade deixa de ser essencial e os caminhos singulares e coletivos começam a divergir. Talvez a velhice seja mesmo o único momento da vida em que enfim podemos ser quem somos, sem nos preocupar com as exigências dos outros ou nos conformar às normas sociais que sempre nos ensinaram a seguir. A obrigação adolescente de pertencer a um ou outro grupo já não vale mais. (…)

    Assim, a excentricidade se coloca como uma rebelião espontânea e alegre contra tudo o que é estabelecido e considerado normal e autoevidente. É um desafio lançado diante do conformismo e da hipocrisia.”

    Inspirada por essas e por outras mulheres velhas e extraordinárias, sigo meu caminho na pesquisa e na vida, esperando apreender um pouco dessas visões que permitem abrir frestas em barreiras claustrofóbicas, alcançando mundos novos, enquanto o atual, em sua prepotência autocentrada, perde beleza e espanto. Fico imaginando as três sentadas juntas, provavelmente num jardim, cercadas de bichos e com um céu estrelado, e adoraria ser um gato passando entre elas para poder ouvir o que viria dessa conversa, na certa sem eira nem beira.

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    É esse mundo vasto que cada vez mais me interessa.

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