Há alguns dias, publicamos aqui a primeira parte de um “dossiê” sobre The White Lotus (HBO), em que comentamos um pouco da série em geral e analisamos mais detidamente alguns elementos da segunda temporada que poderiam, quem sabe, ter passado batido para quem assistiu (o último episódio foi exibido no Brasil no dia 11 de dezembro de 2022). Se você não leu esse texto, recomendamos que comece por lá.
Ao notar que Mike White, o criador da antologia, é tão cuidadoso na escolha de cada detalhe que está em cena, assim como é habilidoso ao escrever e dirigir diálogos e situações permeadas de ambiguidades, acreditamos que a série merecia ser esmiuçada um pouco mais, para que algumas de suas muitas referências e relações de intertextualidade pudessem ser apreciadas. Acreditamos que, com isso,The White Lotus, que já é uma ótima obra, poderia se tornar ainda mais rica e interessante para quem vê.
Escrevo esses parágrafos de introdução conjugando os verbos no plural, porque esses textos foram construídos a quatro mãos — ou duas cabeças: a minha e a da jornalista Isabela Discacciati, convidada especial dessa coluna “Pausa”. Juntas, ao longo de sete semanas e de inúmeras conversas, nos empenhamos em pesquisar, trocar informações e hipóteses de interpretação, num trabalho de investigação muito divertido. Ela colaborou com seu amplo repertório como jornalista que vive na Itália (país em que se passa a temporada da vez, na ilha da Sícilia) e eu, como psicanalista e resenhista de cinema e séries. Cada uma acrescentou aspectos trazidos pela outra e, assim, acreditamos que conseguimos fazer uma análise mais ampla e aprofundada.
Muito obrigada, Isabela, pela parceria nessa empreitada e por assinar essa coluna comigo. Deixo aqui novamente a recomendação para que vocês a acompanhem no Instagram. Ela é autora de dois dos melhores perfis que sigo na plataforma, ambos sobre literatura, arte e cultura italiana de forma geral: @clubeferrante e @passeiosemveneza.
Antes, falamos sobre cinco elementos: a vinheta de abertura, com ótimas ilustrações de Lézio Lopes, brasileiro radicado na Austrália (que também ilustrou a abertura da primeira temporada); as obras de arte que aparecem em cena (com destaque para pinturas e esculturas); um pouco sobre a temida máfia siciliana (tema que perpassa o enredo); a comuna de Cefalù e sua história particular e como a escolha do figurino contribui para a história que está sendo contada. Agora, é a vez de analisar a construção de personagens e as relações estabelecidas — com destaque para Tanya, claro.
A construção de personagens
Um dos grandes méritos de The White Lotus é a construção de personagens que, ao mesmo tempo, são verossímeis, mas que estão vivendo situações extremas ou, no mínimo, de exceção, já que estão de férias em lugares paradisíacos, num momento de pausa ou ao menos, em tese, de distanciamento da rotina e dos conflitos diários.
Na primeira parte desse dossiê sobre a série, falamos um pouco da família Di Grasso, formada pelo avô Bert (F. Murray Abraham), pelo pai Dominic (Michael Imperioli) e pelo neto/filho Albie (Adam DiMarco), três gerações de homens nascidos nos Estados Unidos, com ascendência siciliana, que viajam em busca de reencontrar suas raízes.
Eles representam três modelos diferentes de masculinidade: o avô, refratário a qualquer mudança necessária, autor de frases politicamente incorretas, tão revoltantes quanto hilárias, pela sua autenticidade; o pai, que está no meio do caminho, tentando resistir à criação que recebeu não apenas de Bert, mas de todo entorno que o cerca — sabemos que a cultura atravessa o nosso psiquismo e interfere nas nossas relações mais do que muitas vezes nos damos conta — , mas Dominic segue muitas vezes falhando nessa jornada; e o filho, que já pertence a uma geração em que as discussões de gênero alcançaram outro patamar e, por isso, parece estar — talvez esteja, em alguma medida — em um outro lugar, mais lúcido e progressista.
Mas, através de pequenas fissuras, Albie também deixa passar o resíduo que ainda está por aí — mesmo entre os homens que se julgam mais “desconstruídos” —, como na ideia de se encantar por mulheres bonitas, supostamente vulneráveis, que precisariam ser salvas.
Num dos primeiros episódios, quando ele está jantando com Portia (Haley Lu Richardson) — que conhece na piscina do hotel, num momento em que a moça está irrompendo em lágrimas e ele se solidariza —, ela diz que ele parece ser um cara legal, ao que ele responde que o problema com isso é que as mulheres dizem que querem um cara legal, mas quando o encontram, nem sempre se interessam. É verdade, há algo de irracional e misterioso que molda o nosso desejo: Portia acaba se envolvendo com Jack (Leo Woodall), como falamos na primeira parte desse nosso dossiê, que é quase o oposto completo de Albie.
Mas há um comentário que ele faz em seguida, ainda no jantar com Portia, que nos alerta para essa ideia de salvador, ainda tão intrínseca ao patriarcado. Quando ela lhe pergunta, por sua vez, qual seria o “tipo” dele, Albie diz que costuma se interessar por mulheres que são como “pássaros machucados”. Numa das últimas cenas, quando eles se encontram no aeroporto, após ambos terem sido enganados, respectivamente, por Jack e Lucia (Simona Tabasco) — chegaremos lá, pode haver, quem sabe, uma oportunidade para que se reencontrem em outros termos. Ou seria apenas Mike White sendo Mike White, fazendo uma sátira das cenas românticas em aeroporto, emblemáticas em comédias românticas — o que, se nos lembrarmos, também ocorre no fim da primeira temporada com Shane (Jake Lacy) e Rachel (Alexandra Daddario).
Na verdade, a passagem mais interessante que acontece no aeroporto é quando a família Di Grasso — avô, pai e filho — estão na fila para o check-in, e uma mulher bonita passa por eles. Então, os três viram a cabeça para admirá-la, em uníssono, mostrando que por mais diferentes e complexos que sejam, cada um à sua maneira, em alguns aspectos, os três talvez ainda tenham algo em comum, algo transmitido de geração à geração, perpetuado pela cultura, que avança a passos lentos, muitas vezes sofrendo retaliações de ondas conservadoras, como observamos hoje em diversos lugares do mundo.
A poeta polonesa Wisława Szymborska, laureada com o prêmio Nobel de Literatura em 1996, tem um poema muito bonito em que os primeiros versos dizem: “Somos filhos da época / e a época é política”. Em seguida, continua: “Todas as tuas, nossas, vossas coisas / diurnas e noturnas, são coisas políticas”. Ou seja, é impossível dissociar a construção psíquica de personagens tão ricamente construídos das questões sociopolíticas que os envolvem, como a questão de gênero e a classe social a qual pertencem, entre tantas outras variáveis. Claro, há espaço para singularidade: não estamos falando de um exército de iguais, cada pessoa tem sua própria bagagem e sua própria maneira de carregá-la. Mas há algo em comum entre esses homens, e entre essa classe social, que também não pode ser negado.
Mike White parece bastante atento a essa questão, e por isso também constrói personagens tão interessantes, muitas vezes desprezíveis, odiáveis, fúteis, narcisistas; outras vezes bem mais complexas do que parecem à primeira vista. Isso nos leva, claro, a Daphne, numa atuação fabulosa de Meghann Fahy, a primeira personagem a aparecer em cena na segunda temporada.
É ela quem descobre o primeiro corpo boiando no mar (dessa vez, teremos muitas mortes, o que descobrimos logo no início do primeiro episódio). Isso acontece quando Daphne vai dar um último mergulho antes da partida — e então o tempo retrocede, como ocorre na primeira temporada, e passamos a acompanhar a chegada desse grupo de hóspedes, sete dias antes, e tudo que se desenrolou depois disso.
Daphne parece o estereótipo de uma mulher que atende às expectativas sociais da maioria dos homens clássicos: linda, magra, loira, de cabelos longos, sempre sorridente e gentil, aparentemente alienada do mundo que a cerca, fazendo vista grossa para as indiscrições do marido, Cameron (Theo James, também ótimo no papel de um babaca clássico), sem que nada pareça perturbar o seu estado de constante bem-estar.
Eles são muito amorosos entre si, fisicamente, a ponto de deixarem o outro casal, com quem compartilham a viagem, muitas vezes constrangidos — até mesmo porque, nesse sentido, eles não poderiam ser mais diferentes. Harper (personagem escrita por Mike White exclusivamente para a amiga Aubrey Plaza, que a propósito lhe cai como uma luva) e Ethan (Will Sharpe), ambos também excelentes — aliás, quem não está nesse elenco tão bem escolhido e bem dirigido?
Harper e Ethan são os únicos que não são exatamente pessoas brancas, e nem cresceram entre os super ricos. Harper tem origem latina, com família porto-riquenha, e Ethan, ascendência oriental. Talvez por isso, Mike White os poupe, em termos, do escrutínio geralmente dirigido às pessoas brancas e endinheiradas, foco de atenção e crítica da série — embora faça isso sem dedos apontados em riste.
Harper é obviamente muito inteligente, uma advogada de causas trabalhistas bem-sucedida profissionalmente, que demonstra constante indignação com o que está acontecendo no mundo — o que por vezes lhe tira o sono (Daphne, por sua vez, diz que nunca precisou tomar remédio para dormir).
Essa posição também se reflete no mal-estar, por que não mau humor, que Harper sente em frequentar esse hotel luxuoso, diante de lindas paisagens, ao lado de um casal que prefere não ler notícias para não acompanhar a “narrativa apocalíptica” supostamente criada para perturbá-los. Mas Daphne não é uma dona de casa tradicional, mãe de duas crianças, vaidosa e vazia. Nessa mesma cena, ela diz que gosta de assistir a Dateline, um programa de crimes reais, em que, como ela diz, muitos maridos assassinam as esposas. “Acontece muito durante as férias”, diz sorrindo, embora mórbida, profetizando o que de fato se desenrola na temporada.
Ethan e Cameron fizeram faculdade juntos e continuam em contato, embora tenham personalidades muito distintas — enquanto o primeiro é mais tímido, calado e observador, o segundo continua sendo uma versão adulta do aluno popular, extrovertido, galanteador e excessivamente seguro de si. Os casais não têm intimidade nem afinidades importantes, mas estão tentando se entrosar, apesar da resistência de Harper, e a dinâmica entre eles acaba sendo um dos arcos mais interessantes dessa temporada.
Ethan, tão inteligente quanto Harper, embora menos sarcástico, enriqueceu recentemente depois de vender a empresa que criou. Esse mundo de opulência, portanto, é novidade para o casal, que talvez antes pertencesse à classe média alta, não ao grupo dos super ricos, para o qual agora ascendem. Recolhidos em seus quartos, os dois casais analisam uns aos outros, Harper e Cameron mais críticos do que Daphne e Ethan, que tentam apaziguar os ânimos em cada cômodo.
Mas, enquanto o casamento de Harper e Ethan parece muito mais saudável sob diversos aspectos — eles têm uma amizade que parece sólida e verdadeira, afinidades e valores importantes em comum, que apreciam muito, e uma longa história juntos —, também estão vivendo uma crise que talvez todo casamento longo enfrente, em especial os casamentos em que tudo é dito (eles se gabam constantemente de serem sempre sinceros sobre tudo um com o outro). O dilema é como manter aceso o desejo quando a rotina e o excesso de intimidade talvez obscureçam algo necessário para que o desejo ganhe espaço, algo misterioso.
Daphne e Cameron, por sua vez, em seus jogos de esconde-esconde e de muitas mentiras, teriam, para Harper, o que ela chama de um casamento de fachada. Mas, quando os observamos na intimidade, vemos que as coisas não são bem assim. Entre quatro paredes, o carinho apaixonado entre ambos continua tão intenso quanto publicamente.
Depois do final da série, Daphne tem sido tratada de uma maneira quase idealizada, como alguém que de fato é muito mais esperta do que parece, mas que teria descoberto o segredo para a felicidade através de engenhosas artimanhas. Ela diz, mais de uma vez, que não é uma vítima (primeiro para Harper, depois para Ethan, em conversas muito importantes). Mas o que Daphne rapidamente recalca ou reprime, claro, também é fonte de sofrimento, como vemos de forma comovente no último episódio, em uma cena em que a atriz entrega uma atuação extraordinária durante uma conversa com Ethan.
Há um troca-troca entre os casais (embora não saibamos exatamente o que aconteceu, o que parece uma decisão muito acertada de Mike White) — apesar da repulsa que Harper sente por Cameron —, motivada pelo fato de que ela está se sentindo profundamente rejeitada pelo marido e por outros acontecimentos que, se fôssemos descrever aqui, acabaríamos escrevendo não um dossiê, mas sim um tratado. Mas digamos que uma camisinha é encontrada no sofá da suíte de Harper e Ethan, que se comunica internamente através de uma porta com a de Daphne e Cameron, e isso é um gatilho para que muitas conversas e ações essenciais para o enredo aconteçam. Esse troca-troca acaba por ter um efeito surpreendente entre os casais, especialmente entre Harper e Ethan, pelos quais talvez mais nos afeiçoamos — é difícil não gostar de Harper, embora Daphne também seja uma personagem sem igual.
Em um post em seu perfil no Instagram, a psicanalista Cauana Mestre fala um pouco sobre a dualidade que Harper sente em relação a esse outro casal, que ela julga tão severamente. Enquanto despreza e critica a dinâmica estabelecida por Daphne e Cameron, também sente falta de ter uma relação mais próxima com Ethan, enquanto todas as suas tentativas nessa direção soam falsas ou desajeitadas.
Essa viagem acontece justamente quando eles estão se sentindo mais distantes, ao menos fisicamente. Os horários desencontrados são apenas um indício de que estão vivendo em mundos quase à parte, e a insegurança de Harper, que sempre parece tão assertiva, vai aparecendo sutilmente, até que ela a verbaliza em duas cenas importantes: uma em que ela diz ao marido que entende o desinteresse que ele sente por ela, uma vez que agora está no topo do mundo e poderia ter quem quisesse ao seu lado. Ela lhe pergunta se Ethan se sente atraído por ela, ao que o marido responde: “Eu amo você”. E, outra cena comovente, no episódio final, Harper pergunta, agora completamente vulnerável: “Ethan, o que vai acontecer com a gente?”. A resposta surpreende à personagem e também a quem está assistindo.
Em seu desprezo por Cameron e Daphne, podemos perceber traços de inveja, sentimento que continua sendo tabu na nossa cultura, como bem diz a psicanalista Cauana Mestre, lembrando de Freud, que sempre tratou a ambiguidade humana como uma parte intrínseca de quem somos, defendendo que forças opostas podem coexistir sem necessariamente se anular. Mas também há uma outra relação de inveja entre os amigos Ethan e Cameron: apesar do afeto sincero que parece uni-los, os dois vivem numa competição velada, que extravasam em alguns momentos, primeiro nos esportes (como na cena do jet-ski, por exemplo), e depois numa luta física, quando chegam a se confrontar de fato.
A relação entre essas quatro personagens renderia um texto à parte, mas já nos estendemos bastante por aqui e ainda não falamos das personagens italianas, que vão ganhar um tópico à parte adiante (especialmente Valentina, Lucia e Mia), e, claro, a grande estrela de The White Lotus até aqui, a diva Tanya McQuoid, agora Tanya McQuoid-Hunt, depois do casamento com Greg, os dois únicos hóspedes presentes nas duas temporadas.
Tanya é interpretada pela fabulosa Jennifer Coolidge, que foi ovacionada pelo seu desempenho desde a estreia da série e já está indicada, merecidamente, a outros prêmios importantes pela nova temporada, que acaba de chegar ao fim — como o Globo de Ouro, anunciado um dia depois da exibição do último episódio da série no Brasil. Mas de Tanya também falaremos num tópico à parte, porque a personagem merece.
A pulsão de morte
Desde a primeira temporada de The White Lotus, sabemos que Tanya está atravessada pela pulsão de morte, um dos conceitos mais importantes criados por Sigmund Freud, em “Além do princípio do prazer”, texto emblemático para a psicanálise. Ela chega ao hotel em Maui, no arquipélago do Havaí, queixando-se de dores no corpo e um dos seus primeiros pedidos é para fazer uma massagem. Logo em seguida, assim que é acomodada em sua suíte, descobrimos que carrega consigo, numa sacola de plástico, junto a um amontoado de malas, uma urna com as cinzas da mãe, que morreu há pouco tempo, e com a qual teve uma relação difícil e conflituosa.
Narcisista, insegura, carente, completamente alienada, Tanya parece sempre chapada, uma mistura de medicação e álcool, encontrando em Belinda (Natasha Rothwell), a gerente do spa do hotel havaiano, um porto seguro, que passa a tratar como uma mistura de guru e melhor amiga, e com quem chega a fazer planos de montar um spa, projeto que não hesita em abandonar quando conhece Greg. Os dois surpreendentemente se entrosam muito bem e eles terminam a primeira temporada indo viajar juntos, ela entusiasmadíssima com a nova relação.
Na segunda temporada, o casamento com Greg já não está tão bem. Ela chega sozinha de barco, acompanhada de uma desanimada assistente, Portia, e ele já está no hotel à sua espera, mas sem responder as mensagens enviadas por Tanya. Logo na chegada, Greg se incomoda muito com a presença surpresa de Portia (mais tarde, entendemos o porquê) e percebemos, sem dificuldade, que existe muita hostilidade entre ambos, ainda que Tanya esteja em completa negação. Ela é lenta para processar as informações, não enfrenta a maior parte dos dilemas que aparecem, mas muitas vezes é impulsiva e se comporta como uma criança.
Por mais desprezível que seja essa mulher que tem meio bilhão de dólares e vive uma vida miserável, é ela quem protagoniza as cenas mais engraçadas da série — que tem um senso de humor peculiar, muito inteligente, e é quase irresistível que acabemos torcendo por Tanya. Quando Greg anuncia, dois dias depois, que precisará fazer uma viagem a trabalho, ela chora como um bebê, publicamente. Ele menciona o acordo pré-nupcial que fizeram, e o fato de ela ser uma mulher volúvel, que vive descartando as pessoas, por isso não poderia abrir mão de seu trabalho, pois caso ela o abandonasse, ele ficaria desamparado.
O assunto, claro, volta a surgir mais de uma vez e o que se desenrola a seguir é exatamente o que quase todo mundo esperava: Greg está armando um golpe para se livrar de Tanya e se apropriar do dinheiro dela. Mas como isso acontece, essa é a questão que realmente nos interessa. Mike White não constrói um suspense como quem tira um coelho mágico da cartola. Está tudo ali, diante de nossos olhos, se não de forma óbvia, ao menos bastante clara — embora a tensão vá escalonando em todos os núcleos, de forma que sentimos que tudo pode acontecer.
Esse vídeo da HBO que compila algumas das principais pistas de que, infelizmente, o corpo que Daphne encontra no mar é mesmo o corpo de Tanya, ajuda a rememorar quantas vezes o tema apareceu, de maneira direta e indireta, e foi sugerido pela série sem eufemismos. Há outras pistas que ficaram de fora do vídeo e que poderíamos listar aqui, mas Mike White é um detalhista obsessivo, então seria impossível mencionar todas elas sem nos alongar ainda mais.
Também vale assistir a um vídeo também feito pela HBO que traz alguns dos melhores momentos da primeira temporada da antologia, protagonizados por essa personagem inesquecível, numa atuação que merece toda a nossa reverência.
Em uma das cenas finais da segunda temporada, a já icônica cena do barco, quando Tanya enfim percebe o que está para acontecer, ligando pontos que qualquer outra pessoa um pouco mais esperta já teria se dado conta, temos esperanças de que ela vai conseguir escapar. Mal percebemos e já estamos torcendo por essa heroína torta.
De fato, Tanya consegue reagir de uma maneira inesperada, e acaba matando o grupo de gays com quem fez amizade, mas que estavam interessados em angariar uma parte do seu dinheiro — um deles, Quentin (o ótimo Tom Hollander), havia sido apaixonado por Greg na juventude, antes de se mudar para Palermo, na Sicília, onde herdou um belo palazzo, que custa uma fortuna para manter. A ironia é que Tanya chega a dizer à assistente que o bom de conviver com pessoas ricas como Quentin e seus amigos é que ela pode relaxar, porque sabe que não estão interessados nela pelo dinheiro. Logo descobrimos que era exatamente o contrário.
Aliás, se na primeira temporada Mike White explora o tema da colonização, da apropriação cultural e do embate de classes entre a maior parte dos hóspedes e dos funcionários do hotel, nessa temporada entram outras camadas, uma vez que estamos na Itália, com sua própria história. Assim, temos o grupo de funcionários, liderados pela gerente Valentina (a impecável Sabrina Impacciatore) e as garotas locais, Lucia, que se envolve com Albie e com outros hóspedes do hotel, e Mia (Beatrice Grannò) — falaremos mais desse trio no tópico dedicado ao elenco italiano —, enquanto os super ricos são divididos em dois grupos: os que enriqueceram no novo mundo (mais precisamente nos Estados Unidos), que talvez possamos chamar de burguesia, e os herdeiros da aristocracia, donos de propriedades belíssimas e dispendiosas, proprietários de obras de arte opulentas e muito cultos, mas sem condições financeiras de manter o status do passado.
Isso aparece logo numa das primeiras conversas entre Daphne, Cameron, Harper e Ethan, quando o primeiro casal conta que passou a lua de mel em um palazzo deslumbrante em Veneza, que só conseguiram alugar porque a aristocracia está quebrada; depois também quando Daphne e Harper vão para a comuna de Noto, na Sicília, e se hospedam num lindo palazzo por uma noite; e, por fim, quando chegamos ao palazzo de Quentin, em Palermo, já estamos mais do que avisados de que podemos desconfiar de sua situação financeira.
Tanya é tratada como hóspede de honra, com toda atenção, mimos e gracejos, e assim floresce novamente, saindo rapidamente do estado depressivo que ficou com a partida do marido. Com Quentin, frequenta a ópera (comentaremos mais sobre Madame Butterfly no tópico sobre as outras obras mencionadas na série), tem conversas profundas e enigmáticas (a conversa em que falam da ideia de morrer pela beleza me parece inspirada, quem sabe, em um dos poemas mais bonitos de Emily Dickinson), participa de uma festança com direito a muitas drogas e uma noite de sexo com um dos homens mais desejados da região, segundo Quentin — um jovem ligado à máfia siciliana. Ou seja: Tanya tem seus últimos dias de rainha, como gostaria que fosse toda a sua vida. Mas a morte está sempre lhe rondando.
Logo no começo da temporada, Portia conta a Albie que o pai de Tanya cometeu suicídio quando ela ainda era uma criança pequena. Em outro momento, quando a própria Tanya pede à gerente, Valentina, que chame uma taróloga para ler a sua sorte (o misticismo siciliano aparece de diversas maneiras), a taróloga vem e diz que o marido a está enganando (a carta tirada é a do diabo), que uma das outras cartas é a da beleza (ao que Tanya, muito ela mesma, pergunta: não poderia ser eu? E a taróloga responde que não, não era ela) e depois fica perturbada lendo as cartas seguintes e dizendo, em italiano, que a loucura levará Tanya a cometer suicídio.
Ela, que provavelmente não compreende tudo o que a taróloga diz, tanto porque não é fluente em italiano, quanto porque está ocupada expulsando a senhora de seu quarto por ser “muito negativa”, logo depois que ela aponta que o marido não é confiável (o que Tanya já poderia ter percebido de diversas maneiras — foi ele quem insistiu que fossem a Sicília, lembram? Foi ele quem se incomodou com a presença inesperada de Portia; foi ele quem partiu dois dias depois para, quem sabe, ter um álibi; foi ele quem a acusou de “inalar” cinco macarons enquanto estaria tentando perder peso, enquanto ela argumentava, corretamente, que só tinha comido três (depois encontrou os outros dois, talvez escondidos por Greg?); foi ele quem falou mais de uma vez ao telefone no banheiro e na varanda, sussurrando enquanto ela supostamente dormia, mas, secretamente, o ouvia. Enfim, sempre esteve tudo ali.
Mas Tanya, por sua vez, também voltava continuamente ao tema da morte. Numa manhã, quando vão tomar café na área externa do hotel, diante da vista deslumbrante, ela se pergunta em voz alta: será que alguém já se jogou daqui? A ideia do suicídio ronda a personagem constantemente. Nenhum dinheiro no mundo a protege de suas próprias dores. Ao contrário, talvez a leve a fazer o que ela mesma chama de “uma série de escolhas ruins”.
De todo modo, na cena final do iate de Quentin, quando estão voltando para o hotel em Taormina e ela, enfim, percebe que estão planejando matá-la, Tanya reage inesperadamente, aí sim digna de uma cena de Monica Vitti, atriz italiana com quem ela tanto queria se parecer, e se lembra do revólver do mafioso, que viu na bolsa dele, na noite anterior (já ouviram falar da arma de Tchekhov? Pois então, Mike White faz uso deliberado desse recurso hoje já tão gasto, mas o faz muito bem). Assim, ela pega a bolsa, tranca-se no quarto do barco e encontra, na mala, cordas, fitas adesivas (provavelmente para tapar a sua boca ou amarrá-la junto com as cordas), e a tal arma da noite anterior.
Atordoada, prepara-se para se defender, quando invadem o quarto e, sem olhar para frente, aos prantos, sai atirando para todos os lados, atingindo quase todos seus algozes. Enquanto Quentin está se afogando em sangue, prestes a morrer, ela ainda tem o estado de espírito de perguntar a ele se Greg está tendo um caso — sabendo que o marido encomendou a sua morte, só no mundo de Tanya essa informação teria alguma relevância. Ele morre sem responder, talvez em protesto. O único homem que sobra, se joga ao mar e sai nadando. Fora eles, o grupo de gays que acompanhava Quentin, resta, no andar de cima, apenas o capitão do navio, que não falava inglês e talvez nem quisesse fazer mal a ela.
Tanya ainda poderia tentar recorrer aos celulares dos outros mortos para chamar ajuda (ainda que Quentin tenha dito que o sinal não costumava funcionar em alto mar, o dela toca a tempo de contar a Portia tudo o que está vendo que está prestes a acontecer, antes de deixar o seu aparelho cair no mar). Ela também poderia recorrer a escada no fundo do barco ou ao menos tirar os sapatos de salto antes de tentar pular no pequeno barco adjunto que, em tese, a levaria até o porto. Sabendo que a superfície dos barcos não tem aderência alguma e que ela, uma mulher gigante, altíssima, facilmente perderia o equilíbrio ao tentar saltar dessa forma, ainda assim, é esse o caminho quase “suicida” (aqui friso que essa é a nossa interpretação) que Tanya resolve escolher.
Quando pula, bate a cabeça no barco e afunda, morrendo quase que imediatamente. Enquanto morre, sozinha no fundo do mar Jônico, escutamos uma das canções da ópera de Puccini a que assistiu dias antes, com Quentin, num camarote. A nossa impressão é que é como se a música tocasse dentro da cabeça dela, como se Tanya se sentisse morrendo como uma heroína trágica, algo que é mencionado em uma conversa anterior, ideia que, embora ela pareça rechaçar, talvez ache no mínimo uma morte magnânima.
Em uma entrevista muito divertida, Mike White comenta essa cena e diz que Tanya morre do jeito mais bobo, mais Tanya de morrer, depois de ter enfrentando o pior. Ele argumenta, de todo modo, que não deixaria Tanya morrer pelas mãos de nenhuma outra pessoa além dela mesma — Jennifer Coolidge e Mike White são grandes amigos e ele escreveu não apenas Tanya para que a atriz a interpretasse, mas teve as primeiras ideias de The White Lotus pensando nela.
A cena toda nos parece uma sátira de sequências de ação de filmes estilo 007 ou Missão Impossível, com a diferença que é protagonizada por essa mulher completamente desequilibrada e despreparada e que, ainda assim, cai levando junto seus algozes. Se Greg vai levar a fortuna ou se vão ser capazes de rastrear os acontecimentos até ele, isso é uma pergunta que a temporada não responde. Também não sabemos se Portia teria coragem de denunciá-lo, depois dela mesma ter sido quase morta e ter recebido uma segunda chance com o aviso de não mexer com essas pessoas, que são muito perigosas.
Mike White também diz que quis trazer Tanya de volta para a segunda temporada por conta de uma conversa que ela tem com Greg quando se conheceram, em que ela diz que já teve todo tipo de experiência e de tratamento, a única experiência imersiva que ela ainda não conhecia era a morte. White diz que quis dar a ela essa experiência na nova temporada — o que ele comenta rindo, um humor mórbido e satírico que combina perfeitamente com o tom da série brilhante que ele criou. Nessa mesma entrevista, há outros comentários sobre personagens com o qual nós concordamos e que já havíamos escrito na primeira parte do nosso dossiê e endossamos nessa continuação.
Algumas frases de Tanya já viraram meme na internet, entre elas talvez as duas mais famosas: “Do you know these gays?” (“Você conhece esses gays?”) e “These gays are trying to murder me” (“Esses gays estão tentando me matar”), ambas dirigidas ao capitão do iate, que não entendia inglês, apenas a palavra gay, e responde de volta: “Anche io sono gay” (“Eu também sou gay”, e continua, “Aqui todos somos gays”). Ela reage desolada.
Na próxima coluna, Isabela Discacciati e eu falaremos das outras obras mencionadas na série, do elenco italiano e da trajetória de Mike White. Decidimos dividir em três partes, porque, como podem ver, são muitas as informações, interpretações e comentários.
Continue acompanhando nosso dossiê por aqui.