“Enquanto aguarda um voo, Natalia encontra o médico de cuidados paliativos que atendeu seu pai, Artur. A conversa desperta nela toda a experiência da perda, ainda próxima e repleta de cicatrizes. Artur era médico, então a notícia da volta do câncer vem seguida da certeza da finitude. A morte vira um assunto de família, e acompanhamos com rara delicadeza não apenas o seu declínio físico, mas seus efeitos na vida dos filhos, da esposa e dos netos. À narradora, cabe reconstruir todo esse caminho que, embora dramático, vem carregado pela ternura da memória. As Pequenas Chances é um romance de extraordinária beleza, uma indagação cortante sobre família, lembrança, judaísmo, vida e morte”.
Assim a editora Todavia apresenta o segundo romance da escritora, médica psiquiatra, psicoterapeuta e pesquisadora Natalia Timerman, autora de Copo Vazio, um dos livros nacionais que mais reverberou em diferentes círculos desde o seu lançamento em 2021. Portanto, é com grande expectativa que seu segundo livro do gênero é esperado. A autora também escreveu o elogiado ensaio Desterros: Histórias de um Hospital-prisão (Elefante) e a antologia de contos Rachaduras (Quelônio), finalista do Prêmio Jabuti.
Sua formação — uma faculdade inteira de Medicina, uma residência em Psiquiatria, um mestrado em Psicologia e, agora, um doutorado em Letras — pode dar a impressão de ser bastante diversa e, de certo modo, é mesmo verdade. Quem observa de perto seu trabalho, no entanto, não terá dificuldade de encontrar o denominador comum: um fio, um mesmo fio, que perpassa as diferentes áreas em que atua e os interesses que a mobilizam, e que vai alinhavando tudo em torno de um projeto autoral de literatura e de vida. Essa é a primeira entrevista que Natalia concede sobre seu novo livro e trata, principalmente, dessa sobreposição entre vida vivida e vida narrada.
O seu primeiro romance, Copo Vazio, causou uma comoção rara entre leitores. Agora, As Pequenas Chances, será lançado em breve, e já está repercutindo bastante mesmo antes de chegar às livrarias. Imagino a ambivalência que você está experimentando. De um lado, a alegria de ter reconhecimento como escritora, de solidificar ainda mais essa trajetória que promete ser longa e profícua. De outro lado, a ansiedade gerada pela expectativa da crítica e dos leitores. Como tem sido equilibrar essa equação para você?
Sou e sempre serei muito grata ao Copo Vazio, um livro cuja repercussão superou minhas expectativas e, posso dizer, transformou o lugar que ocupo no mundo. Comecei a escrever As Pequenas Chances antes mesmo de Copo Vazio ser lançado, cada livro meu tem um longo tempo de gaveta, de maturação, nada até agora foi escrito de modo apressado, no calor de um sucesso que é inevitavelmente provisório.
Ao mesmo tempo, também é inevitável me perguntar como um livro tão diferente do anterior será recebido pelos leitores. Como você diz muito acertadamente, é ambivalente: quero ser reconhecida para além de alguém que escreve sobre um tema específico, de uma forma específica, mas não tenho como garantir que terei uma recepção igualmente favorável.
O que está ao meu alcance é ser fiel à minha literatura, mas isso também não é fácil, porque ela ainda está em construção, estará sempre. Não sou eu quem poderá dizer sobre As Pequenas Chances, mas enquanto ele ainda é meu, enquanto ainda não é dos leitores e da crítica, posso afirmar que é um dos livros mais importantes da minha vida, enquanto Copo Vazio foi um livro que simplesmente precisei escrever em um determinado momento.
Em algumas entrevistas, você comentou que Copo Vazio tinha alguma inspiração autobiográfica, ainda que com deslocamentos e condensações importantes, e outros trechos inteiramente inventados. É, portanto, uma obra de ficção. Já em As Pequenas Chances essa mistura entre vida vivida e vida narrada é mais radical e a própria editora o apresenta como um romance autobiográfico, algo que talvez se aproxime do que tem sido chamado de autoficção. O que você pensa dessa classificação?
O conceito de autoficção é escorregadio, instável, há toda uma disputa teórica sobre ele, há quem torça o nariz, há quem o defenda, mas o fato é que o termo, seja por que motivo for, ficou, disseminou-se na imprensa, na crítica, e até entre os próprios escritores. Muita coisa pode caber ali, e segundo definições mais amplas, quase todo romance pode caber sob o guarda chuva da autoficção.
Uma escritora não tem a última palavra sobre seu próprio livro, então não serei nem quero ser quem vai classificar As Pequenas Chances, mas posso contar que, quando cursava uma das disciplinas para o doutorado, ministrada por Andrea Saad Hossne, fui fisgada por um conceito não muito difundido, cunhado, na França, por Dominique Viart em um livro que não foi sequer traduzido para o português: o de narrativa de filiação.
Trata-se de um romance em primeira pessoa que aborda um ancestral como desvio necessário para se chegar a si mesmo, para compreender a si mesmo numa herança interrompida, uma falha, que precisa, então, da ficção para se estruturar. A ficção não entra para preencher lacunas, senão para apontá-las e para conseguir dizer um dilema pessoal que se funde com trauma histórico.
Não demorei muito para entender que parte do meu fascínio era identificação com o que eu mesma estava fazendo, ainda que agora, com o livro já pronto, posso dizer que talvez o meu romance tampouco se encaixe exatamente, porque a narrativa de filiação parte de um incômodo com o silêncio transgeracional, e o incômodo da minha personagem sequer existia inicialmente, ela não se perguntava sobre seus antepassados judeus, tão assimilada que era na cultura ocidental, e a perplexidade que move principalmente a terceira parte do livro nasce daí, da constatação de um desinteresse que só começa a se transformar a partir da morte do pai.
Sei que você se interessa também como leitora, como pesquisadora e como colunista do UOL pelo tema da escrita autobiográfica e pelas discussões literárias tão ricas que proporciona, com questões bem complexas. Pode nos contar um pouco mais sobre esse entrelaçamento, como esse interesse se dá em diferentes esferas e em diferentes posições?
Entrei no doutorado provavelmente para entender porque Karl Ove Knausgård e Elena Ferrante me fascinavam tanto, e para estudá-los, é inevitável pensar na postura de cada um como autores. Não consigo fazer isso sem pensar na minha própria postura como autora, ainda mais num momento histórico tomado pela tecnologia e pelo borramento do limite entre o público e o privado, quando o apelo ao autobiográfico tem sido grande.
A escrita e a leitura ocupam o mesmo lugar na minha vida, um lugar enorme, o da literatura, e tanto minha produção ficcional quanto a periódica, nas colunas semanais, têm muito de autobiográfico. Talvez sua pergunta anterior intencionasse uma resposta mais explícita nesse sentido: o que no meu livro é autobiográfico? O que é ficção? Acho que o próprio livro tem algo dessa resposta, mas não toda. Ninguém é dono da própria vida o suficiente para distinguir, de modo definitivo, o sonho da vigília, a memória da invenção, a realidade da ficção.
Perder um pai amado e um grande amigo é algo doloroso sequer de imaginar, quanto mais vivenciar. Foi muito difícil reviver algumas dessas passagens mais dolorosas na escrita? Ou, ao contrário, a escrita ajudou na elaboração, ainda que parcial dessa perda? Ainda, sei que uma alternativa pode não excluir a outra e talvez ambas sejam verdadeiras. Você nos diria como foi essa experiência para você?
Escrevi diversas passagens de As Pequenas Chances chorando convulsivamente, mas não considero que por isso a escrita tenha sido difícil, ou ruim, ou catártica: ela foi simplesmente necessária. Sei que foi meu livro mais difícil de terminar, de considerar pronto, provavelmente porque ele cristaliza uma experiência pessoal muito importante e definidora, a morte do meu pai.
Ainda que o sentido de um romance não seja imutável, não cabe mais a mim transformá-lo, adivinhar novas nuances e significados. Tive a sensação de que seguiria eternamente trocando palavras e frases, acrescentando, diminuindo. É um livro que precisou quase que ser arrancado de mim, a minha própria voz me dizendo que chega, agora está pronto.