Ao longo de todo esse ano, compartilhei com vocês pensamentos, desabafos e estudos que são frutos da minha trajetória e experiências vividas na condição de mulher, mãe, advogada, professora e escritora.
Falamos sobre violências baseadas no gênero feminino, autoconhecimento como via de transformação pessoal e social, psicanálise, história, relacionamentos.
Hoje, em nossa última coluna deste ano, proponho compartilhar com vocês algumas das experiências que marcaram a minha vida, afinal, as vulnerabilidades conectam.
Fracassos, sucessos, a sublimação dos traumas. A minha jornada de vida é dedicada ao estudo das minhas experiências e de como pacificar as dores e feridas que carrego e oferece-las ao mundo em forma de serviço.
Há um mito que gosto muito e gostaria de compartilha-lo aqui, que é a história de Quíron. Na astrologia, há um estudo sobre Quíron, asteroide que foi descoberto entre os planetas Saturno e Urano e passou a ser estudado em 1977. Quíron representa, em nosso mapa astral, a ferida incurável, a dor da alma. A dor que, se investigada e transmutada, estaria disponível para aquele que a detém transformá-la em seu propósito de vida, oferecendo o seu próprio estudo sobre ela como luz no caminho de outras pessoas.
Na mitologia grega, Quíron foi um centauro curador ferido por uma flechada não proposital de seu discípulo, Héracles. A dor era muito grande e tinha como característica nunca cicatrizar. A dualidade estava ali: apesar de ser um grande curador, carregava uma ferida incurável.
No meu mapa astral, Quíron está posicionado junto da Lua, no mesmo grau, revelando algo que sempre foi bastante evidente para mim. A dor existencial de ter vivido tantas feridas que marcaram a minha energia lunar, feminina, era exatamente o que me salvaria de ser engolida por elas, ou seja, trabalhar com mulheres, auxiliando para que pudessem transmutar, em seu tempo, suas feridas também.
Hoje, como psicanalista, estudo que iniciei pela inquietação que carrego em entender profundamente a natureza humana, vejo que sou advogada especialista em violência baseada no gênero por sintoma. Não haveria como fugir disso. Cresci vivendo conflitos familiares e buscando saídas para o bem das pessoas envolvidas. Mais velha, já na faculdade de Direito, me apaixonei pelo direito criminal e pela luta das pessoas em situação de maior vulnerabilidade. Fiz o pedido de concessão de medidas protetivas de urgência da minha própria mãe, quando já era advogada.
Ainda bem jovem, a maternidade surgiu em meu caminho aos 26 anos e não poderia ser diferente com Quíron tão proeminente à Lua em meu mapa. Dar à luz uma menina moveu estruturas profundas da minha existência.
Não fui preparada para isso. Me senti, durante o parto cesariana, como se estivesse em um shopping. Médicos conversando e ouvindo músicas aleatórias enquanto eu assistia a chegada da minha filha sem preparo emocional algum. O sistema não nos prepara para parir. Logo depois, a recebi em meus braços. Não fui inundada por aquele amor maluco que muitas mães descrevem, me senti apática, desprotegida, insegura, me senti saindo do shopping com uma compra nova, algo que entregaram em minhas mãos e disseram que era meu. Dormi por 30 dias, estava dedicada à rotina dela, mas não estava presente de alma. Não entendia ao certo o que estava acontecendo ali e meu maior medo era desintegrar a mim mesma, esquecer quem eu era, os meus desejos mais profundos como mulher. Lembro que lutei para estudar. Naquela época eu havia sido convencida pelo meu pai que o lugar seguro para uma mulher era em uma carreira pública e eu estava decidida a atender o seu desejo – não o meu –, de tornar-me juíza ou procuradora.
Estudei, com uma bebê pequena, por 5.000 horas. Acordei às 5h da manhã em muitas madrugadas, aproveitei todos os momentos em que ela dormia para estudar, além de limpar a casa, preparar a comida e criar a minha filha. Ali, a minha vida tinha acabado. Eu já não sabia mais quem era a Izabella que eu conhecia e tentava aceitar o meu destino: mulher desempregada, estudante e mãe de uma bebê pequena. Mas a minha alma resistia. A resistência foi tanta que lembro de estar estudando quando achei que fosse morrer, vivi minha primeira crise de pânico e foi tão intensa que tive medo de pular da janela. Destranquei a porta da casa, pois se algo acontecesse a mim, poderiam salvar a minha filha. A partir desse episódio, passei pelo menos 10 meses sendo acompanhada por pessoas da minha família, tinha medo de ficar sozinha, não conseguia chegar perto de janelas, me mantinha presa e fechada dentro de casa, medicada por remédios tarja preta que me fizeram engordar mais de 10kg e perder a referência que eu mantinha sobre o meu corpo. Já não me sobrava mais nada de mim.
O chacoalhão veio do mar. Estava no mar quando enxerguei que precisava voltar para o meu caminho, a advocacia. Que eu não melhoraria presa em casa. Tracei a estratégia: ioga e advocacia.
O ioga, como passe de mágica, foi equilibrando meu sistema nervoso central e equacionando os hormônios, o corpo físico, mas também os corpos energético, mental, emocional e espiritual. A advocacia me recolocou alinhada ao meu propósito.
A partir daquela decisão, precisei de um ano para estar estabelecida novamente em meu caminho. Abri meu escritório de advocacia, me tornei professora de ioga como forma de verdadeiramente compreender aquele estudo ancestral e prometi a mim que a minha próxima gestação seria a cura para todas as experiências traumáticas que eu havia vivido até então.
A gravidez do Bento foi um bálsamo, apesar de ter vivido ali toda a tristeza que uma mulher pode experienciar por não ter ao seu lado, em uma relação afetiva de casal, o pai de seu filho. Foi turbulento, mas eu estava comprometida comigo. Fiz todo trabalho espiritual que estava ao meu alcance: retiros, cursos, viagens, fiz tudo. Fui cuidada por dona Francisquinha, parteira indígena que me brindou com saberes ancestrais, criei conexões profundas com mulheres que me deram suporte no meu parto e mudei de equipe médica com 39 semanas. Estava decidida a fazer tudo o que eu poderia para não viver outra depressão pós-parto e para preservar a minha vontade de ter um parto natural. Bento chegou após dias em trabalho de parto, de forma natural, sem analgesia. Chegou com o nome do santo que expurga demônios e abre caminhos. A minha força havia voltado para mim. Três dias após o parto, eu estava em uma delegacia com uma cliente pedindo a concessão de medidas protetivas para ela.
Minha vida nunca mais foi a mesma. A maternidade e a prática espiritual abriram os caminhos para que eu vencesse, naquele momento e em tantos outros, todos os medos que bloqueavam a minha ascendência como mulher e buscadora espiritual.
Hoje, me permito viver a impermanência da vida. Conheço a minha força, minha grande aliada, mas conheço bem o que a distorção sobre os próprios poderes pode fazer com a gente. Sei que nada é garantido ou garantia.
Encerro esse texto com um livro que me inspirou nessa jornada, de Castañeda, A Erva do Diabo, um diálogo havido entre o próprio autor e um “brujo” chamado D. Juan.
No diálogo, Castañeda pergunta ao brujo qual o segredo para se tornar uma pessoa de conhecimento, momento no qual o brujo passa a explicar sobre os quatro inimigos naturais.
O primeiro é o medo. Que pode ser vencido pela coragem.
O segundo é a clareza de espírito, que pode chegar como vislumbre após o desenvolvimento da coragem, mas pode cegar a pessoa prepotente, que distorce a clareza por imaginar que entendeu tudo.
O terceiro é o poder que, se não for um “poder controlado” pode vencer a pessoa, que morrerá sem alcançar a sabedoria.
O quarto é o tempo. Ah, o tempo, que jamais será controlado por qualquer pessoa, mas que pode levar à fadiga, exaustão e transformar a pessoa buscadora da sabedoria em alguém que, após tanta luta, não conseguirá implementá-la.
De tudo o que o brujo nos ensina o que fica é a impermanência. Nada é permanente. Nem mesmo a sabedoria.
Meu grande pacto comigo mesma é nunca esquecer da trajetória, de onde vim, porque vim e como posso me manter humildada perante a impermanência da vida e seus mistérios. Sempre buscando entender e transcender a minha existência e as dores da minha jornada como mulher. Se o sistema não está para nós, estejamos nós para nós, como nossas maiores aliadas.