Retomo meu espaço na CLAUDIA com gosto de festa. Este é um texto inaugural: o primeiro de uma sequência de, inicialmente, doze que tratam sobre, aparentemente, escapar.
Os textos que estarão nesta coluna fazem parte de um livro em construção, de não-ficção, onde visito o conceito do espaço para escrever, a fuga do ambiente doméstico como tentativa de romper com o que pode nos impedir de escrever, a vergonha de fugir, a residência fora de casa, os quartos de hotéis, as casas emprestadas, os espaços criados.
Orhan Pamuk escreveu no seu discurso quando venceu o Prêmio Nobel de Literatura:
“Escrever me dá a ideia imediata de alguém que se tranca num quarto, senta-se à uma escrivaninha e, sozinho, se volta para dentro, entre suas sombras constrói um novo mundo com palavras. Primeiro vem a tarefa crucial de sentar-se à mesinha e, pacientemente, voltar-se para dentro. Escrever é transformar esse avesso em palavras.”
Ele continua e menciona o pai: “Quando ele estava conosco, como eu, ele só queria se ver sozinho num quarto, esbarrando nessa multidão dos seus próprios sonhos”
(…) “Escrevo porque me dá prazer me fechar em um quarto durante o dia todo. Eu escrevo para estar sozinho.”
E eu escrevo de um hotel na Baixa, em Lisboa. Aviso que chegarei na hora combinada. Conto que estarei lá para escrever. Escrever o quê? Escrever, justamente escrever. Difícil função intransitiva.
Penso no que nos cerca, no que que nos move e em todas as coisas que são feitas de palavras. Ainda assim, escrever pode parecer um desenho que se faz sozinho, sem esforço, sem espaço vazio para que seja criado. Para escrever, preciso:
- arredar o telefone e o menu de couro preto da mesa onde qualquer pessoa colocaria o celular, a carteira, a bolsinha com as escovas (as de dente e as de cabelo)
- espalhar meu caderno que precisa estar vazio, apontar o lápis até quebrar um pontinha
- olhar para os lados e me desesperar um pouco
- ir ver se o chuveiro é bom
- verificar a vista e com o canto do olho notar que, apesar da revolta dentro, o caderno continua sem uma palavra sequer
- verificar a vista de novo e notar, inconsolável e miserável que, por mais bonita que seja a imagem viva da janela, é o por dentro que vai me remoer.
Bebo um gole largo do vinho branco que me foi entregue. Um naco exagerado de cada um dos cinco tipos de queijo. Escreva, escreva. O que faço com toda essa possibilidade? Lá fora é Lisboa e, que impressionante, um dia completamente normal e alheio à minha apreensão se desvenda.
Ainda que o homem magro, olhos para dentro, cor de fumaça, chupe o cigarro, estrelinha que acende frágil, à porta da Confeitaria Nacional, ainda assim, hoje eu faço 50 anos, fugi de casa e vim para este hotel escrever.
A moça de casaco cinza – a cor mais triste e ressentida do mundo – ainda assim, sorri ao telefone e não tem ideia de que eu ouço quando ela marca um almoço para o sábado e tudo isso sem ela saber que, ainda que hoje é meu aniversário, infelizmente ele veste cinza e eu preciso escrever.
A ponta da estátua do cavalo da Praça da Figueira e a ponta do Castelo se iluminam e acendem o canto do meu olho sem saberem que hoje eu faço anos. Paisagens inúteis que não me arrancam sequer uma linha. Fecho as cortinas. Brinco de abrir e fechar as cortinas com seus tantos botões: blackout, cortina, abrir, fechar.
A janela é tão baixa que mergulho numa cidade de buzinas, apitos e sininhos e escuto o senhor, geralmente, elegante com seu jeito atesourado de andar, olhar para os lados e cuspir bem em frente à grande, gigante Zara que se ergueu Golias em frente à minha janela.
Enquanto ele escarra, não sabe que hoje é meu dia e que preciso de um texto, que tenho um quarto belíssimo à minha disposição, tenho vinho, tenho comida, estou completamente livre para escrever. Engancha e entorta o nervo do dever: escreva, escreva.
Quantas pernas quase foram pegas pelos oito elétricos que vi passar da janela do tamanho de quase uma parede inteira, bonita, do Hotel Internacional no dia dezoito! Pessoas que, como galinhas, se apressam com o avanço do tempo e a quase colisão. Galinhas salvas que riem amarelamente quando alcançam o passeio. Hoje é meu aniversário e aquelas pessoas não morreram.
Vejo isso da janela que dá, olho direito na Praça da Figueira, olho esquerdo no Rossio.
Fugi de casa no dia do meu aniversário só para escrever. Preciso pensar num jeito de não pedir desculpas por isso.
*Agradecimento ao International Design Hotel, Rossio, Lisboa, Portugal
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