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Fugas e Residências, por Nara Vidal

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Nara Vidal é autora dos romances “Eva” e “Sorte”, e do livro de contos “Mapas para Desaparecer”. Nascida em Guarani (MG), ela é formada em letras pela UFRJ com mestrado em artes e herança cultural pela London Met University. Direto de Londres, escreve para CLAUDIA sobre as múltiplas experiências da vivência feminina.
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PARES E ÍMPARES

Quando a convenção não serve

Por Nara Vidal
22 jun 2022, 08h33
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  • Nunca me esqueci quando, entre amigas num café em Chalk Farm, em Londres, o motivo das gargalhadas era a frase divulgada por Gwyneth Paltrow e Chris Martin, “conscious uncoupling”. Talvez em português, o termo queira significar a separação consciente e cuidadosa de um casal, não de uma família. Pelo menos foi isso que passei a entender daquela chacota que, quem diria, hoje me serve como se tivesse eu cunhado o termo. 

    Nós nos conhecemos numa tarde quente de agosto, no sul de Londres. Eu, recém-chegada da Itália, estava disponível para um amor inglês. E lá ele estava, do outro lado do bar. Cruzamos olhares e fui ao encontro dele. Perguntei se poderíamos tomar um drinque. Ele aceitou e começamos um jogo de adivinhar de que país eu era. Depois de conversar por vinte minutos, eu sabia que aquele seria o pai dos meus filhos. Até hoje não sei explicar de onde surgem essas intuições, mas elas acontecem com uma força e coincidência tremendas.

    Avançamos dezesseis anos desde aquele dia e estamos, que ironia, sentados na sala da nossa casa, numa tarde de agosto, mas, dessa vez, eu não o convido para uma gim tônica. Agora, eu digo a ele que quero me separar. Eu sabia que o que eu dizia não era novidade. Nosso casamento vivia pressões imensas e ia se perdendo. As mãos não eram mais dadas quando saíamos, evitávamos a companhia um do outro e, sem culpas, íamos sozinhos ao cinema e não combinávamos mais em nada. No entanto, nunca deixamos de cultivar uma amizade profunda entre nós. Afinal, o pai dos meus filhos foi, desde que o conheci, um país pra mim.

    Era a minha família, minha referência e meu número de emergência nas fichas do hospital. Ele suspirou e me disse que estava aliviado, já que não teria tido a coragem de me dizer que queria o fim da relação, mas que estávamos na mesma página. Eu, que sofria de uma dor nas costas de amargar, me esqueci de ir ao fisioterapeuta porque fiquei curada. Naquela tarde, saí para correr e me lembro de sentir um fluxo de adrenalina pelo meu corpo. Eu estava livre. Não dele, mas para mim. Quando falamos com as crianças, alguns meses e sessões de terapia depois, confesso que ficaram assustados. Imaginaram que teriam que se mudar, ou que alguém sairia de casa. Temiam que a unidade familiar, o conforto do que está sempre no mesmo lugar, se rompesse. Do ponto de vista deles, quase nada mudou. Já dormíamos em quartos separados, já saímos e viajávamos de formas independentes. Mas a rotina quase intocada provou a eles que a vida continuava como antes: refeições juntos, passeios juntos e as mesmas brigas para decidir quem coloca gasolina no carro. Quando sugeri a separação, a única coisa que me importava era que mantivéssemos o respeito entre nós e nossos filhos. 

    É curioso pensar que, apesar da surpresa de amigos e conhecidos diante da nossa configuração relacional, o nosso não é um caso raro. Uma matéria no New York Times, de abril deste ano, elabora sobre vários casais que decidiram por um arranjo não-convencional. É também verdade que, usualmente, um acordo com essas características leva em conta dois pontos incontornáveis: as finanças e os filhos. Para muitos casais, alugar ou comprar duas casas é impossível sem sacrifícios diversos e profundos demais. Além disso, é sedutora a ideia de manter a estrutura familiar se não há problemas de convivência. Faz imenso sentido: não há gastos extras e altos com a separação, o divórcio, os advogados, as aquisições de novas moradias. Ou seja, desde que sejam amigos ou mesmo só civilizados, dá para testar essa forma de relacionamento, sim. O que não pode haver entre o casal é mágoa, ressentimento ou raiva– ou os três. 

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    Quando eu sabia, lá naquele agosto de 2004, que o meu ex-marido faria de mim uma mãe, o que eu vi e se confirmou foi que esse homem que é o pai dos meus filhos é um tesouro. Um homem de imensa dignidade, inteligência, comprometimento, beleza e fino senso de humor. Então, por que não quis continuar com ele? Porque acredito que os nossos desejos se transformam e não temos mais que ficar com uma única pessoa para o resto da vida, como ficavam nossas bisavós, avós e até mães. Hoje, muitas de nós têm condições de escolha e sabemos dos nossos direitos. Uma maneira emancipada de estar no mundo e cuidar de si e dos que nos cercam é não permanecer onde respiramos com a ajuda de aparelhos

    Preciso ressaltar que o formato de co-parenting ou nesting partner não funciona para todos que querem se separar. O que testemunhei até hoje foram casais que não se suportavam quando reivindicavam o término, e por isso mesmo, ficar na mesma casa estava completamente fora de questão. Quando há ofensas e brigas, o digno é mesmo cada um ir para um lado. Quando há violência e agressão, alguém precisa ir à polícia. 

    Esse formato funcionou e vem funcionando na minha casa porque, acima de tudo, somos profundamente amigos, queremos o bem um do outro, ainda nos beijamos no rosto antes de dormir cada um, claro, no seu quarto. Mas, você acertou: nem tudo são flores. Há ocasiões em que quero estar sozinha e tenho certeza de que o mesmo acontece a ele. Às vezes, gostaria de trazer uma companhia pra minha casa, mas não é nada simples.  Sem contar que, quando um relacionamento sério acontecer, terá que ser com alguém que tenha compreensão e flexibilidade para entender esse tipo de acordo e convivência familiares. Afinal, temos bagagens!

    Ainda assim, nas minhas mais honestas e recorrentes fantasias, eu e o pai dos meus filhos passamos férias juntos num canto qualquer do Mediterrâneo: ele com a nova família, eu com a minha e nós dois com a nossa. Acho bonito quando as pessoas se organizam civilizadamente, levando em conta que, agora adultas, são elas que dão as cartas na mesa e decidem as regras do jogo. A convenção deveria ser a reorganização, à vontade, da norma. O maior saldo em assumir essa configuração não usual é provar pros meus filhos que viver de aparências é uma escolha. Só não é a nossa. 

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