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Fugas e Residências, por Nara Vidal

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Nara Vidal é autora dos romances “Eva” e “Sorte”, e do livro de contos “Mapas para Desaparecer”. Nascida em Guarani (MG), ela é formada em letras pela UFRJ com mestrado em artes e herança cultural pela London Met University. Direto de Londres, escreve para CLAUDIA sobre as múltiplas experiências da vivência feminina.
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Espaço das Mulheres

De passagem por Paris, descobri uma livraria dedicada aos escritos de mulheres. Me lembrei de Simone de Beauvoir, de Virginia Woolf, de Clarice Lispector

Por Nara Vidal
17 mar 2023, 10h49
Espaço de Mulheres, escritoras e a literatura
A autora francesa Simone de Beauvoir, em 1968, dentro de seu apartamento em Paris.  (Jacques Pavlovsky/Sygma/Getty Images)
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Em março, participei de um festival literário em Poitiers, na França. Quando recebi o convite, confesso que questionei sobre as razões de tão ilustre chamado. Afinal, não tenho ainda nenhum livro traduzido para a bonita língua de Simone de Beauvoir. Mas um departamento de Língua Portuguesa, dentro de uma universidade pode nos levar a experiências das mais sublimes. Do dia para a noite, numa sala de aula de graduandos franceses, ouvi meus textos serem lidos e encenados em francês. 

Uma das minhas participações me deixou apreensiva. Não dormi bem na véspera. Preparei o que dizer, mas, chegando na hora, as coisas tomaram um rumo efervescente e febril. Eu tinha sido convidada a falar sobre feminismo, no dia 8 de março, para adultos em seus dezenove, vinte anos, na França, na universidade. Não seria capaz, não era possível. Mas foi. 

E para que seja possível, uma mulher precisa se lembrar que se sustenta sobre os próprios pés. Que o espelho que seguramos para os homens se olharem, confiantes, garbosos e cheios de razão, como nos fez pensar Virginia Woolf, foi virado e diante dele, eu mesma. A voz era minha e a vez também. Eu era a adulta, eu liderava aquele espaço e aquele momento. Eu era a dona das minhas palavras. Ninguém me interrompeu. Fui eu que fiz perguntas, debati sobre umas tantas outras. 

Como sinto muito por ter perdido imenso tempo na minha vida, questionando se era ou não capaz de fazer coisas das quais era mais que capaz! Como sinto muito por sorrir e manter as boas maneiras quando, num debate, minha contribuição poderia ter sido mais interessante do que a do homem que falava sobre as mulheres, ou sobre política, ou sobre literatura, ou sobre as artes. Sinto muito por não levantar meus ombros em postura ereta e firmar-me como quem acabei sendo. Tornar-se, como propõe Simone. 

Meu filho, no jantar, me pergunta: qual o objetivo do feminismo hoje, quando já não há desigualdade? Depois de corrigi-lo sobre a falha, já que, sim, a desigualdade ainda paira mais ou menos nítida, aqui e ali, falei sobre os nossos direitos que nunca são uma garantia atemporal. Direitos devem ser exercidos, valorizados, protegidos. Direitos não devem ser naturalizados porque estão frequentemente sob ameaça de extinção. 

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Espaço das mulheres, Nara Vidal
Espace des Femmes, em Paris. (Nara Vidal/Acervo pessoal)

A história, em seus ciclos, nos prova que não é possível estar vivo sem uma luta travada. As ameaças à democracia, o crescimento da extrema direita, a normalização de uma supremacia branca, o discurso fascista e sua linguagem em nome de Deus e da família são perigos constantes, demônios que nos observam com olhos vermelhos e brilhantes por trás da mobília, aguardando a hora de entrar em cena. E a hora de entrar em cena é quando estamos dormindo. Portanto, ao meu filho, eu digo que não basta que ele entenda a reivindicação. É preciso que ele lute por ela sempre que flagrar o disparate entre gêneros. 

Naquele dia, na França, enquanto eu me colocava na frente da sala e projetava a voz para falar do que não pode mais sofrer sabotagem, olhava para os lados e via cartazes, imagens na parede com fotos minhas, trechos dos meus textos em português e em francês, minhas palavras que se ampliam, meu pensamento que ganha acolhimento. Naquele dia oito de março, eu me apresentei a todos que cruzavam comigo como uma escritora

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Espaço das mulheres, Nara Vidal
(Nara Vidal/Acervo pessoal)

Dias depois, caminhando por Paris, me deparo com uma placa interessante que dizia: Espace des Femmes. Entro num beco com saída em direção ao espaço que é, portanto, meu também. No entanto, não sei o que me espera. Passa um homem. Percebe que estou hesitante. Aproveito e pergunto a ele se sabe o que é o Espace des Femmes. Ele me diz que não sabe, infelizmente, mas que deve ser um salão de beleza. Prefiro ir lá verificar. Quando me aproximo, uma livraria inteira se transborda feito uma cascata diante dos meus olhos. Lá estão Cixous, Beauvoir, Lispector, Hooks, Levy, Rose, Woolf, Mansfield, Wollstonecraft, Solnit, Beard, Alderman. Um salão. Um salão de Beleza, de fato. Essa espécie de paraíso, ainda que conhecido por tantos, não estava no meu radar. A ignorância pode ter a vantagem da surpresa. 

Cheguei em Gare du Nord. Pego o trem Paris – Londres. Começo a pensar sobre o que fazer com o futuro que me resta. Futuro, esse lugar que nunca existiu e que não passa de um alívio para as horas apertadas em compromissos, decepções, apreensões. O futuro, essa personagem necessária, sempre presente e com a qual se percorre melhor a vida, me ocupa com ideias de uma livraria

Vou abrir um espaço onde vou acolher obras de arte para exposição, escritores para residências literárias, encontros que um dia serão chamados de festivais e, acima de tudo, uma livraria. Mas não vou querer vender apenas livros escritos por mulheres. Vou fazer melhor. Vou fazer como nos foi ensinado porque somos inteligentes e aprendemos rápido: vou dedicar duas ou três prateleiras e pregar uma plaquinha identificando “literatura masculina”. Pronto. Assim, ficamos elas por elas.

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