Delicada violência
Uma elaboração sobre os ciclos de violência doméstica e psicológica
A escritora norte-americana bell hooks cita no seu bonito ensaio Tudo Sobre o Amor uma reflexão de Morgan Scott Peck que diz que o desejo de amar não é o próprio amor e que o amor é o que o amor faz. Então, por que há tanta violação dentro das relações afetivas?
A violência dentro das relações me causa imensa curiosidade e reflexão. É possível que todos nós já tenhamos passado por algum tipo de violência, velada ou explícita, dentro de territórios supostamente seguros, como o de dentro de casa. Para deixar claro, vou abordar aqui somente um foco dessa violência: aquela entre casais.
Quando escrevi meu romance mais recente, Eva, desenvolvi uma narrativa para a última parte do livro que refletia bastante da minha própria experiência. Posso, aliás, afirmar que a motivação central para aquela parte do romance veio de uma experiência que eu gostaria de esquecer, mas não esqueci. É duro admitir isso, mas é menos duro do que é me sentir omissa em relação a um problema que, eu sei, nos afeta em vasto número e assume forma de vergonha e culpa. Para a mulher que passa por qualquer intimidação e violência dentro de casa, em total descrença, saiba que você não está sozinha e não é com você que há algo de errado. Mas como se chega a esse ponto?
Não é do dia para a noite que se dá um pulo com a palma da mão aberta ou o punho fechado e aquele corpo que recebia carinhos e gozo passa a sentir o embate físico da boca que espuma de raiva, dos olhos cegos de ciúmes, do estômago em náusea por rejeição. Não. Esse é um processo parecido com as ondas porque se repete, ainda que alguns movimentos pareçam brincadeira e outros nos deem rasteiras e nos derrubem ao chão.
Todavia, não é fácil notar essas ondas aos pés, porque as mesmas ondas que nos pegam de surpresa em golpes, são águas que refrescam, que acalmam e relaxam. A dualidade dos encontros entre os corpos talvez seja o que mais confunde e encobre a visão dos casais.
E tudo acontece de forma tão lenta que é quase como tentar ver o filho crescer. Mas assim como as blusas de uma criança que, do dia para a noite, lhe expõem os pulsos e o umbigo, um grito, uma atitude desrespeitosa, um comentário malicioso são sinais de que a violência já encontrou naquele terreno um lugar para se alastrar. E como se espalha! Intoxica, inclusive, o que é visto como natural. Se, em uma desavença, há alguém que grita, fala num tom que soa desconfortável aos ouvidos do outro, é porque, até então, assim foram as relações que aquela pessoa teve quando as diferenças se apresentaram. Mas assim como drama não é paixão, agressão não é amor.
Graças ao estudo da psicóloga americana Lenore E. Walker, é possível identificar os ciclos de abuso. Tudo sempre e incontestavelmente começa com a tensão que é quando o abusador se sente incompreendido e uma comunicação pacífica passa a se tornar impossível. Daí, o incidente: ofensas, gritos, humilhações, xingamentos, agressão verbal, psicológica ou física. Há aí uma tentativa do abusador de dominar a vítima, seja por manipulação, seja por autoritarismo, seja por descrédito ou desvalorização de boas ações da vítima. Concluída essa etapa, o remorso, a culpa, a vergonha. Tomado pela apreensão de que a vítima saia de casa ou chame a polícia, há o pedido de desculpas. Finalmente, o período da calma: o agressor concorda em começar alguma terapia, pode comprar presentes ou tentar agradar a vítima, mostra interesse sexual acentuado e sugere uma tranquilidade possível. Até voltar ao início do ciclo. É interessante entender que, apesar de não identificarmos o perfil de mulheres que passam por essas agressões, o perfil dos abusadores se repete com características em comum.
Quando testemunhamos o comportamento tóxico ou indesculpável de alguém com quem nos relacionamos, é claro que mora aí um sentimento de posse. A posse e o autoritarismo, os mesmos que manipulam as nossas palavras a um ponto de quase loucura, são a referência mais distante do amor. O amor rejeita a posse porque é bicho solto, ar livre, caminho. É difícil amar dentro de uma insegurança porque ela gera muitas formas de uma violência delicada. A posse e o ciúmes são suas personagens principais. Como coadjuvantes, a manipulação e a humilhação seguem o show. Gaslighting é muito mais comum do que se pensa. Quando identificado, talvez seja mais inteligente devolver os insultos com silêncio e esperar, no dia seguinte, a hora segura de sair da casa ou da vida de quem identifica afetações e humilhações como paixão.
Outro dia, conversando com uma amiga, falava sobre esse assunto e de como é possível para as pessoas continuarem um relacionamento depois de algum tipo de agressão. Como uma escultura feita de massinha para criança brincar começasse a ser manuseada, deixando impressões digitais e, depois, marcas de pressão. Quando se vê, a forma já se modificou tanto, que já não mais reconhecemos um começo. Há alguns casos que se identifica, claro, um arrependimento tão grande que é possível ter fé. O maior problema é que a cegueira abraça, sem distinção, a boa ou a má intenção.
Como a Eva, eu também, um dia, parei diante de um prédio, em Acton, em Londres, onde passava muitos finais de semana e notei que meu corpo estava inteiro. Diferentemente da Eva, eu não passei a carregar meu corpo morto, mas abandonei aquele meu corpo fragmentado e fiz dele uma fotografia mental que serve como alerta para mim mesma.
Quando escolhemos continuar um relacionamento que passou por alguma agressão – verbal, física, emocional – sabemos que na escolha nos responsabilizamos pela fé que optamos em ter. Ainda que a mácula da vergonha agora venha de mãos dadas com a esperança e que, talvez, a única forma de levar um relacionamento assim adiante seja nunca fechar a porta ou os olhos. O amor é o que o amor faz.
Nota: em caso de agressão, procure um amigo que possa oferecer um lugar seguro e, em seguida, procure o disque denúncia.