Abro o Google Maps.
Para onde ir depende do que eu posso comprar. Depende do que eu posso comprar como escritora. Budapeste parece sedutor. Mas eu quero mesmo ir ao mar. Quero sentir o sal na pele quente e queimada, os cabelos loucos em desalinho, secos ao vento. Quero voltar ao mediterrâneo. Quando eu tinha uns onze anos, fiz algumas aulas de natação com um tio, em Guarani. Eu era uma criança asmática e todo ano era internada no hospital da cidade com pneumonia. Foram quatro anos assim. Todo mês de agosto, minha madrinha chegava na minha casa com um presente: pijamas novos para a internação em setembro. Apesar da asma e da natação que, supostamente, garantia uma melhora no meu quadro, comecei rapidamente a desaprender a nadar. Aos 21, eu me casei. Fui morar em Copacabana e, aos 23, com o fim casamento, passei a frequentar a praia com amigos. Queria voltar a nadar. Areia, calor de tirar o juízo, ondas gigantes, uma mineira perdida levando caixote. Na borda da praia eu pensava em como seria bom poder estar lá no azul escuro, depois da onda, sem onda nenhuma. Aos 28, fui morar na Itália. Era para me curar de um coração meio partido, mas, assim que cheguei em Sorrento, vi que não estava partido coisa nenhuma. No meio do mediterrâneo, com os amigos italianos que tinham um barquinho para o fim de tarde quente e longa, aprendi a nadar. Eu me lembro do medo de me distanciar da barca, mas só se aprende a nadar mesmo quando há a necessidade de se salvar. Então, eu precisava abandonar a embarcação. Budapeste vai ter que esperar. Vou para o mar.
Abro o Google Maps.
Estarei sozinha.
No livro The Cost of Living, da Deborah Levy, parte da trilogia Living Autobiography, a autora fala do momento em que, em alto mar, solta a mão do barco que a segurava. Que ao olhar em volta, se viu no caos, no meio da tempestade. Ela poderia nadar de volta ao barco, mas não quis. O incerto passou a ser seu lugar. Uma referência ao fim do casamento da autora que, com 50 anos, se viu, forçadamente, autônoma através da sua escrita e com duas filhas.
É a primeira vez que eu e meu ex-marido dividimos férias. Meus filhos viajam com ele enquanto eu penso que seja uma boa ideia sair do lugar também. Pisar para fora de mim e ver a paisagem. Viajo muito sozinha e sempre viajei. Mas há algo de diferente, e não sei se é bom ou não. Há uma liberdade que é quase sufocante. Tantas vezes quando viajo, os filhos estão em casa com o pai. Dessa vez, não há qualquer resquício de culpa — ainda que eu não tenha mesmo tendência ao sacrifício. Estamos todos em férias, todos em viagem, todos felizes. Mas é estranho.
Quando chego ao meu destino, olho em volto e só vejo famílias, casais, grupos de amigos. Penso nos filhos. Tenho medo de ser acusada de ter destruído um grupo. O membro da banda que quis seguir carreira solo. A cabeça começa a delirar. Por que eu não estou com eles? Por que eles não estão aqui comigo? Será que é mesmo tão difícil viver com as mãos firmes no barco que me salva do caos? Sou uma egoísta. Não sou uma egoísta. Há uma liberdade irresistível em recomeçar. Quem sabe os filhos e o pai deles também sintam esse entusiasmo que eu sinto diante do desconhecido, de deixar ir embora a canoa? Vai ver eu não desmantelei coisa nenhuma porque ninguém arruina o que já está em pedaços. Do outro lado da video chamada, minhas crianças sorriem, cabelos também em desalinho pelo mesmo vento e sol.
Abro o Google Maps.
Eu não estou sozinha.
Temos uma pequena viagem marcada: eu e meus filhos. Desta vez, sem o pai deles. Talvez recortar em volta de cada personagem da fotografia da família feliz, dê a cada um o senso de sermos inteiros, mas na separação. Para pais que não são um casal e vivem sob o mesmo teto com os filhos, essas, aparentemente, singelas viagens, são o corte necessário para reconhecer que quando a mãe abandonou o navio, ela o fez porque a segurança da embarcação era ínfima se comparada com o que ela sente quando o vento lhe atrapalha os cabelos em plena tempestade.
Volto ao livro da Deborah Levy, que fala sobre a armadilha da mãe escritora. A que nunca tem tempo para os filhos porque trabalha demais e por pouco dinheiro. Mas é ainda esse pouco que possibilita a autora mostrar às filhas o mundo e as artes. Não é a primeira vez que estarei sozinha com eles em férias de família, mas é a primeira vez que o que sinto corresponde ao que vejo: nós três com a alternância de eles três. Eu aprendi a nadar aos 28. Aprendi a dirigir aos 40. É tarde, solto as mãos do barco, mas estou disposta.