São Paulo, 17 de julho de 2020.
Em 2019, o jornal New York Times (EUA) lançou uma iniciativa provocadora: The 1619 Project. Com ensaios da jornalista Nikole Hannah-Jones, o projeto apresentava uma outra perspectiva sobre o “nascimento da nação” americana, questionando o ano de 1776 como a data de “fundação” dos Estados Unidos.
E por que 1619? Em agosto de 1619 pisaram, no porto do estado da Virgínia, entre 20 e 30 africanos sequestrados para serem escravizados. Assim, como provocam os ensaios do projeto, o sistema bárbaro de dominação e escravização de pessoas inaugura a sociedade norte-americana, sendo parte do seu mito de origem. Além disso, os ensaios apresentam 17 trabalhos literários, de compositores e escritores negros contemporâneos, que escolheram esses eventos em 400 anos que aniversariava a nação. Esses processos criativos foram organizados cronologicamente, como explica o próprio site do projeto, sendo incluída uma introdução com o momento histórico correspondente. Ainda houve parceria com o Smithsonian’s National Museum of African-American History and Culture para o material visual da história da escravidão americana.
O projeto e o trabalho desenvolvido por Nikole Hannah-Jones é primoroso. De tão incrível e bem construído e narrado, o projeto ganhou o Prêmio Pulitzer desse ano – o mais importante prêmio americano para as áreas de jornalismo, composição musical e literatura e que é administrado pela Columbia University, da Ivy League (grupo de universidades de ponta americanas).
Era de se esperar que, em um ano de intensas manifestações e de levantes, ações e discussões envolvendo a pauta racial, mas principalmente demandando políticas e ações antirracistas nos Estados Unidos, que esse projeto fosse celebrado e bem utilizado para que um processo de responsabilização e reparação de fato acontecesse no interior de uma nação que se constitui e tem como um de seus pilares usar as diferenças como instrumento para hierarquizar, escravizar e aculturar povos e culturas, sob uma falsa narrativa, e carregada de política, de superioridade x inferioridade. Mas, infelizmente, não é o que tem acontecido.
É fato que muitos celebram o prêmio e tem utilizado esse potente e desafiador projeto como ponto de partida para diversas discussões. Mas, pasme, a onda trumpista resolveu escolher esse um projeto para o contra-ataque supremacista. Aliás, diversos ataques políticos e em redes sociais, colunas e jornais tem sido realizados contra vários pesquisadores, escritores e ativistas antirracistas, sejam negros ou brancos. O fato de se posicionar faz, mesmo de pessoas brancas, um alvo supremacista. O nível é tão absurdo que o Secretário de Estado norte-americano, a pasta mais importante do Executivo do país, resolveu fazer declarações atacando o projeto, chamando o NY Times de comunista (veja o absurdo!), em uma ação que, obviamente, tem impactos de atiçar os ataques que o jornal vem recebendo, mas principalmente Nikole Hannah-Jones tem enfrentado, inclusive com ameaças de morte.
Quando falamos que o debate racial é tão importante, não é por mero acaso. A prova de sua importância e sua centralidade em uma agenda emancipatória está exatamente nos ânimos que ele suscita quando colocado na mesa. Quem quer, realmente, enfrentar as dificuldades, feridas abertas e sanar os problemas acarretados no seio de nações importantes para reconfigurar futuros de igualdade, justiça e paz tem sido constantemente chamado de anti-patriota. Quando, na verdade, a negação para enfrentar essas questões que tem consequências dramáticas em nossas sociedades até hoje é que estão no cerne da manutenção desses problemas.
Hoje, por exemplo, saiu uma entrevista de um financiador brasileiro dizendo que desconfia quando algum texto fala em”desigualdades”. Ou seja, há a tal da ideologia “morgan freeman” a todo vapor. Como se não falar de problemas fizesse com que eles magicamente desaparecessem. Mas a prática e a história apresentam o contrário, que cada vez que nos recusamos a enfrentar problemas de frente e negamos as principais questões de nossos países com passados construídos no colonialismo, o que fazemos é perpetuar desigualdades e esses problemas vão, cada vez mais, sendo aprofundados. Eu, inclusive, desconfio de quem nega que existam desigualdades, de quem não queira falar de desigualdades. Não que eu me surpreenda com a falta de perspectiva e defesa dos interesses nacionais dos grupos dominantes brasileiros, que sequer podem ser chamados de elites diante de tanta venda e desprendimento da construção de, ao menos, um Estado de bem-estar social no Brasil.
O filósofo e intelectual norte-americano Jason Stanley, que estuda o neofascismo nos Estados Unidos – mas que, diante da realidade brasileira, tem se debruçado sobre nós em suas reflexões e estudos atuais – em diálogo com o seu livro “Como funciona o fascismo: a política do ‘nós’ e ‘eles’” (L&PM, 2018), apresentou um ponto importante para entendermos essa história toda: o mito de um passado glorioso e que, portanto, quem o questiona é visto como uma ameaça que precisa ser destruída. Quando, em verdade, sabemos que só resolvemos problemas reais, e que são fatos em nossas sociedades, se os enfrentarmos.
Vejo muito disso no Brasil, infelizmente. E já falamos sobre essa negação e recusa por aqui, mas é um ponto que sempre vamos voltar. Não se trata de ameaçar, mas de querer, de verdade, compreender nossos principais gargalos para conseguirmos superá-los. Ou queremos sempre ser essas sociedades que fazem das diferenças desigualdades?
Para Nikole Hannah-Jones, como já o fiz privadamente hoje, meu afeto público. Como ela mesma disse em tweet recente: que tempos!
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