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Juliana Borges é escritora, pisciana, antipunitivista, fã de Beyoncé, Miles Davis, Nina Simone e Rolling Stones. Quer ser antropóloga um dia. É autora do livro “Encarceramento em massa”, da Coleção Feminismos Plurais.
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#100MilVidas. E isso não é novo normal.

A nossa indignação e tristeza de hoje precisam ser os rompimentos com o silêncio. Não há nada de normal em 100 mil mortes evitáveis

Por Juliana Borges
Atualizado em 10 ago 2020, 12h59 - Publicado em 8 ago 2020, 21h01
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  • São Paulo, 08 de agosto de 2020

    #100MilVidas. E isso não é novo normal.

    Todos sabemos que um dia teremos que encarar a morte. E cada um de nós enfrenta esse processo, ou não, a seu modo. Mas, sabemos que ela um dia virá. E quando essa morte poderia ter sido evitada? E quando ela é fruto da negligência, de uma ausência política, de um “e daí?”. E quando dizem que vamos ter que lidar com isso e seguir em frente, quando sabemos que 100 mil pessoas ainda poderiam estar com seus familiares? Não se trata de um processo natural, mas de vidas que foram roubadas. E precisamos responsabilizar quem deveria ter feito algo sobre isso.

    Duas das questões fundamentais para a produção epistêmica negra é sobre romper silêncios e nomear processos e indivíduos. Romper o silêncio de muitas formas. A primeira para denunciar projetos políticos de morte e para que falemos, já que nossas vozes têm sido sistematicamente silenciadas. E há o grupo mais identitário dos identitários, de homens, brancos e de classe média/alta, que grita indignado quando pedem que eles só escutem um pouco e permitam que outras vozes falem, já que estamos cansadas de escutá-los há séculos. Eu acho isso de fragilidade macho-branca, de meninos mimados e acostumados a poder tudo e que quando alguém impõe limites porque está cansada desse jogo de uma via, eles batem o pé e fazem marra. Ironicamente, se dizem “silenciados”, quando estão apenas lutando para permanecer em privilégio. E é essa lógica e política da fragilidade macho-branca que tem nos governado. De homens que não aguentam se sentir contrariados e questionados. Por isso é tão importante romper o silêncio. Porque não suportamos birra. A segunda, sobre nomear problemas, grupos e indivíduos, advém de uma perspectiva de que quem não se nomeia é nomeada. Assim o é há tempos remotos. Sociedades do solo africano eram diversas e centenas. Se nomeavam de variadas formas, com uma riqueza linguística imensa. Sequer se viam africanas ou negras. As culturas e sociedades europeias resolveram se nomear e nomear os outros e com o intuito de legitimar as estratégias de invasão, roubo e sequestro de pessoas desses continentes.

    Na perspectiva individual, não se nomear abre a brecha para que nos chamem de “aquela lá”. A intelectual Lelia Gonzalez falava disso: de que mulheres negras precisam ter nome e sobrenome ou o racismo dá o nome que quiser. A importância da nomeação não é nova, nem apenas uma formulação das lutas antirracistas. Feministas assim também formulam, povos originários em luta pelo reconhecimento de suas vozes, culturas e sociedades também o fazem. E mesmo a sociedade eurocêntrica assim compreende há séculos. Para os gregos antigos, nomear era ato para dar existência. Ou seja, só existe o que tem nome. Não é possível formular, refletir, trocar com o que não sabemos o que é, sobre o que não nomeamos.

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    Projetos como o “Inumeráveis” têm sido fundamentais no luto de uma doença que tem nos desafiado em todos os sentidos. Inclusive, tem desafiado nosso luto. A página junta ao nome da pessoa uma frase, como que um epitáfio, proposto pela família sobre alguma característica ou lembrança daquela pessoa que se foi, que foi roubada. O que entendo como mais precioso desse projeto é justamente como ele se apresenta: como um memorial. Outro projeto que busca guardar essas memórias é o “Reliquia.rum”, da antropóloga Debora Diniz e do diretor Ramon Navarro, que conta algumas das histórias das vidas levadas por essa pandemia. A escolha do nome também diz a que veio, um projeto que busca guardar memórias.

    A memória tem uma importância imensa para nós. Porque memória homenageia, memória presentifica, memória conforta, memória é permanência. E, por mais que o processo de luto também seja um processo de deixar ir, uma interrupção abrupta e que poderia ter sido evitada, tem na memória um lugar de repousar. É preciso nomear para dar existência de que essas mortes não serão esquecidas e que demandamos responsabilização, reconhecimento e reparação a todos os que sofrem com elas.

    É um processo violento o que estamos vivendo e, infelizmente, ele não é uma novidade. Nosso país nunca foi amistoso, mas um território de brutalidades que se reconfiguram e permanecem. Antes da pandemia, já discutíamos a pandemia da violência, que tirava, por ano, mais de 60 mil pessoas de nós. Mortes, também, evitáveis. Me parece que estamos naturalizando a morte da pior maneira possível. E temos de nos repensar sobre isso.

    A nossa indignação e tristeza de hoje precisam ser os rompimentos com o silêncio, as nossas solidariedades aos familiares que ficaram e não puderem se despedir e que, portanto, estão tendo que lidar com outras maneiras de viver a passagem, de viver o luto. Precisamos rechaçar um discurso que tenta nos impor que estaríamos vivendo um “novo normal” (gente, como eu odeio essa expressão!). Não há nada de normal em 100 mil mortes evitáveis. Não há nada normal em sermos o único país registrando mais de mil mortes diárias. Não há nada normal em sermos o país em que mais mulheres grávidas morrem pela Covid-19. Que normal é esse em que tantos de nós choram sem poderem exercer suas cerimônias; choram sendo que poderiam, ainda, estar com os seus? Não, isso não pode ser normal.

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