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Juliana Borges é escritora, pisciana, antipunitivista, fã de Beyoncé, Miles Davis, Nina Simone e Rolling Stones. Quer ser antropóloga um dia. É autora do livro “Encarceramento em massa”, da Coleção Feminismos Plurais.
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Eu precisava de um tempo

A exemplo do filme Pantera Negra e de ideias de autores afrodescendentes, Juliana Borges valoriza a junção da raiva com a fúria

Por Juliana Borges
1 set 2020, 20h56
 (Disney/Divulgação)
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São Paulo, 01 de setembro de 2020

Amiga, eu precisava de um tempo. E não estava muito claro, de início. Um dia, eu estava enrolada com outros textos. No outro, eu precisava assistir aula. No seguinte, era uma estafa mental muito grande. Mais adiante, foram notícias que me deixaram para baixo. E, por fim, Chadwick Boseman, eterno T’Challa, de Pantera Negra, se foi. Incrível que a dor que senti foi imensa, como se uma pessoa próxima tivesse partido.

Talvez seja difícil para alguns mensurar a importância da produção Pantera Negra e daquele elenco, liderado por Boseman, para toda uma comunidade. Particularmente, eu fui ao cinema quatro vezes, com grupos diferentes de amigos. Primeiro, com uma amiga, depois com meu primo e irmãs, depois com um grupo de amigos da minha “quebrada” e, mais uma vez, com amigos outros. Sempre, um evento. Sempre, chorando ao final, na cena de T’Challa e Killmonger. Segundo Chadwick, Killmonger é o verdadeiro herói do filme, por externar revolta acumulada diante de injustiças e desigualdades. E eu confesso que imaginava um outro desfecho, no qual ambos poderiam conciliar raiva eloquente e fúria para promover transformações.

E você pode estar pensando, mas qual a diferença entre raiva e fúria? Muitas. A formulação sobre raiva é extensa entre a intelectualidade negra. Para autores negras como Audre Lorde, bell hooks e Brittney Cooper, a raiva acumulada por anos, por microagressões racistas cotidianas, pode ser trabalhada como um importante catalisador e promotora de crescimento, de informação. Ou seja, a “raiva com precisão”, de Audre Lorde; a “raiva assassina”, de bell hooks; ou a “raiva eloquente”, de Brittney Cooper; com algumas nuances entre elas, têm como ponto de encontro a capacidade de serem transformadas em energias criativas e potentes. Já a fúria, seria um ponto de tensão maior, como proposto por Audre Lorde, diante das opressões cotidianas. Ambas, por sua vez, são diferentes do ódio. Esse último, como força destrutiva e limitante, promotora de desigualdades. A raiva, quando não reprimida, pode e deve ser ponto de construção e de sobrevivência, e também de humanização, já que é um sentimento que nos lembra, todo tempo, que estamos vivas.

Eu pretendo falar mais vezes disso por aqui. Mas, creio que por hora, fica esse início para entendermos a complementariedade das personagens de T’Challa e Killmonger em Pantera Negra. Seja pela raiva eloquente, seja pela fúria, ambos têm suas camadas de contribuição para uma discussão sobre o que queremos e podemos construir. E essa é uma das discussões em profundidade que um filme como esse proporciona.

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Sem contar na questão da representatividade e da autoestima de crianças negras. Um super-herói negro, em um grupo de super-heróis de destaque, com uma história centrada em sua contribuição sem precedentes, e tecnológica, ao planeta, em uma África afrofuturista, potente, sem a visão de miséria tão estereotipada no mundo. No mesmo livro que fala sobre “raiva eloquente”, Brittney Cooper apresenta essa raiva transformadora criativa como um superpoder, principalmente de mulheres negras. E as mulheres negras de Pantera Negra são um show que não fica à parte, mas que fazem parte de toda aquela narrativa. Mulheres negras apresentadas de forma positiva, com força, vitalidade, inteligência, delicadeza, desejos e complexidades.

É possível escrever por muito tempo sobre Pantera Negra, sobre suas personagens, e creio que muitas pessoas o farão, mais qualificadas do que eu, que só tenho um amor como mulher negra telespectadora, sobre essa produção.

E por que tudo isso tem a ver com o meu tempo? Porque acredito que há momentos que precisamos recuar, viver nossos sentimentos, absorvê-los para degluti-los de outro modo. Eu senti muita raiva por perdermos uma referência tão importante como Chadwick Boseman, principalmente em um ano que já perdemos tantos tão importantes como ele. Será justo? Não sei. As únicas coisas que sei é que esse não seria mesmo um ano fácil, já avisavam os orixás, e que essas pessoas estão em força ativa entre nós, em memória poderosa e vigorosa, nos orientando com seus exemplos e trajetórias para onde podemos caminhar. Esse tempo foi importante para compreender minha raiva como força criativa, sobre como eu deveria devolver tantos sentimentos ao meu redor.

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Não posso afirmar que voltei com tanta energia, porque ainda é duro estarmos em meio a uma pandemia, com centenas de pessoas ainda morrendo todos os dias no Brasil e vermos a miséria humana em termos banalizado tanto as perdas, a ponto de muitos estarem afrouxando o distanciamento social. A travessia ainda parece longa, mas eu sigo naquela esperança de que dias melhores virão. Se é bem verdade o que T’Challa nos dizia, “a morte não é o fim. Apenas um ponto de partida”, espero que a gente tenha a capacidade de refletir que ainda devemos muita vida aos que já se foram. Não sei se já estamos preparados para essa responsabilidade, mas a vejo como inevitável.

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