São Paulo, 05 de maio de 2020
Hoje, tive que ir ao mercado. Compra do mês. Herança que tenho e nunca abandonei de minha mãe e avó, dos tempos de alta inflação, lá pelo final dos anos de 1980 e início dos 1990. De modo que, para mim, não é um sofrimento planejar a partir da dispensa, organizar a lista e pensar as compras para todo o mês.
Mas, uma coisa foi absolutamente diferente e profundamente sensível em relação às compras do início de abril. As ruas estavam com alta circulação de pessoas, a entrada do mercado tinha fila (já que o mercado resolveu adotar medidas de número mínimo de pessoas circulando em suas dependências). Uma maioria de pessoas com máscaras, mas uma parcela considerável de pessoas andando sem proteção alguma, como se ainda estivéssemos em janeiro desse ano. Como se não estivéssemos enfrentando uma nova escalada da doença, de modo vertiginoso, violento. Como se já não tivéssemos batido mais de 7000 mortes oficiais, como se não houvesse subnotificação de, na melhor hipótese, cinco vezes; como se nosso sistema de saúde não estivesse caminhando para o colapso; como se hospitais não estivessem lotados; como se cemitérios não estejam trabalhando sobre alta demanda; como se pessoas não pudessem ser veladas e seus familiares não pudessem se despedir. Tudo isso está acontecendo. E várias pessoas nas ruas.
Certo. Vivemos em um país de desigualdades gigantes e muitas pessoas precisam sair para trabalhar. Mas e vários adolescentes que vi dando “rolê”? E vários senhores nas pracinhas com seus amigos? E as pessoas que vi fazendo caminhadas, utilizando equipamentos para exercícios nas praças? Estudos já comprovam que corridas e caminhadas podem espalhar o coronavírus em um raio de até 10 metros. Ninguém pensa nisso? Como disse um prefeito italiano: “todo mundo virou atleta agora? ”. Mas justo agora? Quanto mais demorarmos para aceitar a realidade que se impõe de que o isolamento é um instrumento eficaz para conter a rápida disseminação da doença e garantir que todos possam receber o atendimento necessário, mais vidas vamos perder, mais difícil será sair dessa situação.
Não sou uma pessoa que acha que se compreende a sociedade humana apenas pela leitura econômica. Por isso, escolhi primeiro a literatura e, depois, a antropologia. E acho que há outras questões que precisamos levar em conta quando discutimos comportamento. Até que ponto estamos, de fato, compreendendo a gravidade da situação? Quando afirmamos a omissão do Estado, se fazendo presente em muitas comunidades apenas pela polícia, estamos falando de uma série de direitos que são negados cotidianamente a milhões de pessoas. A presença do Estado deveria se realizar pela escola e a educação de qualidade, oferecendo ferramentas de aprendizagem efetivas, consolidando as capacidades críticas e interpretativas do mundo. Quando a gramática social se efetiva pela violência, muitas são as pontes destruídas para um comportamento cidadão. O que quero dizer é que se o único discurso (entendendo discurso não apenas como texto) é expressado pela violência, temos consequência um processo que constrói, tanto em quem imprime a violência quanto em quem é vitimado por ela, desumanização. Ou seja, uma dinâmica nas quais as vidas são constantemente precarizadas, esvaziados de seu caráter e importância política (e uso “política” aqui de modo mais amplo para o simples exercício da participação pelo voto, mas de expressão como sujeito de direitos). Essa violência, por sua vez, banaliza relações, banaliza e naturaliza o perigo iminente de morte. Se essas vidas são tão desprovidas de direitos, se suas existências são tão banalizadas, a relação seria de pouca importância a elas. E isso se espalha e se internaliza, se impregna em um não sentir empático sobre si e sobre o que está em volta.
Ao fazer passeios, ao acharmos que uma caminhada é inofensiva, estamos reproduzindo a naturalização da hierarquização de vidas, já que os leitos da rede privada estão com menos lotação do que os leitos da rede pública (estes já próximos ao colapso), o que significa dizer que ricos terão tratamento adequado e pobres terão maiores dificuldades para isso, mesmo com todo o compromisso dos profissionais da saúde do SUS.
Não é milagre que nos fará derrotar essa pandemia. É a ciência, mas sobretudo a nossa capacidade de exercício da empatia não apenas sobre o outro, mas também sobre nós. Ao relaxar o isolamento, sem ter nenhuma necessidade disso, o que se mostra é um descompromisso com a própria vida antes de qualquer coisa. E um descompromisso que afeta o todo social.
Se é do Estado e das instituições uma total omissão, e até ações, que precarizam nossas vidas, nosso ato de rebeldia tem de ser ir contra todo o processo que nos retira direitos e dignidade, que nos torna menos humanos, que reproduz a gramática da violência sobre nossas vidas e as vidas dos que amamos e nos importamos.
Não relaxe o isolamento, se você puder. Se estiver ao seu alcance escolher sobre isso, se estiver ao seu alcance protestar e se posicionar para garantir esse direito à vida. Fique em casa.
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Em tempos de isolamento, não se cobre tanto a ser produtiva: