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Samba é amor

A autora Kenia Maria fala dos significados e simbolismos do samba e de como ela os encontrou em sua vida

Por Kenia Maria
Atualizado em 23 jul 2020, 18h35 - Publicado em 10 fev 2019, 10h00
 (Jamie Grill/Getty Images)
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No final da minha primeira década de vida, morei em Laranjeiras, na Zona Sul do Rio de Janeiro. Era início dos anos 1980. Nessa época, meu pai era segurança de uma família tradicional e frequentávamos o Jockey Club, o Theatro Municipal e restaurantes da moda. Ana era a esposa de Roberto Negrão de Lima, o empregador do meu pai. Ela tinha dois filhos, mas adorava andar comigo pela cidade e me chamava de princesa. Dizia que um dia eu seria rainha.

Para mim ela era dona Ana. Apesar de eu ter 8 anos, sabia que não poderia chamá-la de tia. Não era uma regra verbalizada, mas estava estabelecida. Lembro que, certa vez, estávamos na porta do Theatro Municipal, pois tínhamos acabado de assistir O Quebra-Nozes, quando uma amiga da dona Ana me perguntou se eu sabia sambar. A pergunta me paralisou. Eu falava, me comportava e me vestia como as meninas mais ricas daquele lugar, mas algo em mim dizia para aquela mulher que eu sabia sambar e não dançar balé.

Nasci em Del Castilho, subúrbio carioca, sou neta do babalorixá Samuel Gama, ex-companheiro de Sinhá, sobrinha de Natal, fundador da Escola de Samba Portela. Mas aquela senhora não sabia nada disso. Então, por que ela havia imaginado que eu sabia sambar?

Quem me ensinou a sambar foi a minha tia Dida, e eu me sentia na obrigação de aprender. Lembro do olhar de reprovação da minha irmã Bia quando não movia os braços como deveria. Amava ouvir as histórias que meu pai contava de quando ele e minha mãe frequentavam a quadra da Mangueira. Certa vez, ele me falou que um baluarte colocou o próprio lenço sob os pés de minha mãe para que eles não tocassem o chão enquanto ela sambasse. Na minha imaginação, vi uma rainha entrando no palácio do samba e sendo reconhecida pelos reis do castelo.

De ascendência alemã, dona Ana narrava para mim os contos dos irmãos Grimm. Eu conhecia quase todos e sabia que as princesas e rainhas ali não sambavam.

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Mas eu ainda precisava responder para a amiga da dona Ana, que estava com um sorriso contemplativo como quem olha um E.T. Sei que, de certa forma, ela queria entender a minha presença naquele lugar. Tinha certeza de que as outras meninas não sambavam. Então respondi: “Não! Não sei sambar”. Naquele momento, me senti uma estranha para mim mesma. Eu neguei o samba como quem nega a Deus, sabe? Hoje entendo o significado disso.

Dona Ana dividia sua cultura eurocêntrica comigo porque acreditava que isso me salvaria de alguma coisa… E eu sentia que era do samba. E, mesmo sem saber que o samba fora duramente perseguido, como canta Nelson Sargento, meu corpo entendia que era sagrado. Ainda assim, eu sentia vergonha. Entrava na roda e meu Ori me dizia que aquilo era herança ancestral. Posso frequentar o Theatro Municipal e ser sambista! Mas, quem sabe, se tivéssemos sambistas na Academia Brasileira de Letras, eu não teria vergonha de dizer que sabia sambar?

Poetas ignorados pelos membros da ABL são imortalizados pelo povo, como diz Candeia. Educando ou denunciando sem tirar o nosso direito de amar. O samba conta as histórias de amor do povo que não frequentava as altas rodas da sociedade. Amores que não são contados no cinema. Cartola disse que as rosas roubavam o perfume de Dona Zica. O samba não deixou que nos tirassem o direito de amar. Amor de sambista é resistência.

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Samba é coisa de trabalhadores: artistas e escultores, como cantou Martinho da Vila. Que o samba seja a cura. Ah, amiga da dona Ana. Hoje, com muito orgulho, eu respondo: “Sim, eu sei sambar!”.

Kenia Maria é defensora dos Direitos das Mulheres Negras da ONU Mulheres Brasil e autora de Flechinha – O Príncipe da Floresta (Malê)

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