Lembro de quando meu namorado me perguntou o que é o ser. Estávamos na cozinha, era uma manhã de domingo, nós dois ainda meio dormindo, minha gata se espreguiçando no chão, o cheiro de café misturado àquele silêncio morno… Até ele me vir com essa.
– Bom, o ser… – falei após uma pausa. – Não é algo fixo, está em movimento. Ser é devir.
Achei minha resposta satisfatória para uma manhã de domingo e me recordo de, na sequência, ter levado minha mão até o pescoço e dado uma coçadinha. Ele me olhou nos olhos, tocou meu pescoço e disse:
– Você não acha que o ser é esse pescoço que você acabou de coçar? Essa mão? Esse nosso olhar?
Fiquei pensando nisso por todo o domingo. Mas, sobretudo, me abrindo para sentir o ser não como uma abstrata explicação mental, mas como algo que está bem aqui, não em outro lugar, e bem agora, não em outro momento. Como o cheiro que sai do bule de café. Como o amor que sinto pelo meu namorado.
Ao longo da nossa vida, nos contam diferentes histórias sobre o amor. Observamos como nossos pais se amam, nossos vizinhos, os personagens das histórias. Vamos entendendo como o amor deve ser e encaixando o sentimento em uma série de narrativas e expectativas. Definimos que o parceiro, ou a parceira, deve ser assim. Tememos encontrar isso, não podemos encontrar aquilo. Decidimos casar ou ficar solteira. Falamos que os homens não prestam ou que os adoramos. Pensamos no plural. Nem sempre adentramos o singular. É claro que a experiência de amar é particular. O amor está nos aprendizados e nas vivências anteriores de cada um, na cultura na qual nos inserimos. Mas também está nos joelhos se tocando embaixo da mesa, no susto de uma discussão no meio da noite, na força do abraço na volta de uma viagem, no ineditismo de cada beijo inteiro, de cada beijo que não damos no piloto automático.
Não é raro sofrermos de miopia perante a pessoa amada, essa que está bem diante de nós. Muitas vezes, o que enxergamos são expectativas e decepções em relação a ela. Entendemos o amor de uma forma, observamos, nos machucamos, concluímos, esperamos e passamos a vivenciá-lo afastadas por uma grossa névoa mental que turva nossa visão. É como se andássemos com molduras embaixo do braço tentando encaixar os encontros nelas. A fruição é, muitas vezes, soterrada pela dificuldade de soltar um pouco a cauda das experiências anteriores e nos entregar àquela que está amanhecendo agora.
O que chamamos de amor? Como aprendi que deve ser? E você? Estamos nos permitindo atravessar nossos labirintos internos pelo amor que está aqui, agora, seja pelo parceiro, ou parceira, seja pelos nossos amigos, seja pelos nossos filhos?
Mergulhamos com mais profundidade na experiência de amar e ser amada quando nos despimos de definições, explicações e falsas certezas carregadas com cuidado. Assim como o ser, o amor talvez não seja um mistério a ser compreendido, e sim um mistério a ser vivido. Assim como o ser, o amor não é um buraco negro dentro de nossa mente, essa parte de nós tão analítica e insatisfeita e tão presa a lembranças do passado e a fantasias do futuro, mas uma estrela que brilha e se move diante de nós, concreta e pulsante, clamando para ser enxergada em toda sua força vital. Como a mão. O pescoço. A pergunta no café da manhã. O gato se espreguiçando na cozinha.
Liliane Prata é jornalista, filósofa e autora de O Mundo Que Habita em Mim (Instante)
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