De cima da laje da casa, com vista para o enorme complexo da Favela da Rocinha e, mais além, dos morros e praias cariocas, uma família celebra o Ano Novo. Taças de espumante, muita dança, gritos de alegria e um beijo de celebração entre Jurema e Nicinha.
O casal de mulheres negras, da periferia do Rio de Janeiro, ialorixás, protagoniza um dos episódios de Meu Amor – Seis Histórias de Amor Verdadeiro, série da Netflix. Dirigido por Carolina Sá, o episódio integra o projeto do diretor coreano Jin Moyoung que documenta também relações na Espanha, no Japão, nos Estados Unidos, na Índia e na Coreia.
Diz o clichê que o amor é a linguagem universal. Não que seja uma verdade (ou mentira), mas essa crença é boia salva-vidas para as comédias românticas e para os românticos otimistas que creem em infinitas possibilidades para o sentimento.
Enquanto o encantamento, o carinho e a afeição são obviamente traços humanos – onde quer que esse humano esteja –, as formas de demonstração são absolutamente associadas a cultura e contexto, assim como as relações que se originam a partir do sentimento amoroso.
Essa reflexão fica ainda mais clara com o passar dos episódios (apesar de eu recomendar fortemente ver o brasileiro antes, tanto pela conexão como pela riqueza de detalhes). Nicinha e Jurema estão juntas há 43 anos. Elas se conheceram num samba, quando Jurema viu Nicinha, ainda adolescente, arrumando briga e enfrentando quem a desafiava.
“Encontrá-las foi uma sorte e uma bênção. A gente queria um casal que tivesse uma relação homoafetiva e que fosse de religião de matriz africana, porque são dois pontos de resistência no Brasil para além das intempéries da vida a dois. Esse era o plano de fundo que a gente desejava ainda na época da pesquisa. Quando as encontramos, vimos que elas eram o que estávamos buscando e muito mais”, explica Carolina, que passou a frequentar a casa das personagens mesmo fora dos períodos de gravação.
“Eu comia lá e, quando via, já tinha passado o dia. Tirava soneca na cama delas, ficava lá conversando”, conta a diretora, que hoje, por causa da pandemia, mantém contato por mensagens e ligações. O episódio, que acompanha o casal por um ano, termina no Réveillon de 2020 – e choca perceber como a gente não fazia ideia do que nos esperava alguns meses depois com a Covid-19 se tornando uma realidade tão próxima.
As infinitas formações do amor
Quando conheceu Nicinha, Jurema já era mãe de quatro crianças. Em certas fases da vida, quando elas se separaram, Nicinha engravidou dos três filhos. Hoje, moram todos juntos: mães, filhos, netos. Nicinha ainda trabalha como empregada doméstica, como fez por toda a vida. Jurema encara problemas de saúde e tenta, no sistema público, uma cirurgia – que só pode ser feita após a diabetes estar sob controle.
Gestos fortes de carinho e resistência são perceptíveis e comoventes. As mãos dadas a todo momento, no ônibus, ao caminhar pela rua. Uma preparando café ou chá para a outra. A companhia nas consultas médicas. “É muito verdadeiro, construído por elas. Não daria pra forçar isso. O amor é expandido, expande para a família, os filhos de santo delas”, conta Carolina. “Esse cuidado pelo outro é raro.”
Juntas, elas constróem uma casa num lugar rural afastado. É um processo de anos, com cada quantia que conseguem juntar, num plano para a aposentadoria longe da cidade. Enquanto isso, aproveitam o dia a dia com a família, celebram a formatura da primeira filha a se formar numa faculdade, fazem os rituais da umbanda no terreiro que têm em casa.
“Eu falo que a Jurema era nossa Fernanda Montenegro, porque ela foi ficando tão acostumada com a câmera, numa tranquilidade. E elas não são mulheres ativistas que usam a relação delas como uma questão política. Então não era algo que elas anunciavam pro mundo”, fala Carolina, que escreveu a música que encerra o episódio. “É uma música de amor, porque eu estava muito tomada por aquele sentimento depois de conviver com elas.”
Talvez o que seja universal no amor, não só aquele entre casais, é justamente o poder de transformação do sentimento. Jurema e Nicinha representam tantas pessoas diferentes em suas lutas, mas através do amor entre elas, com os filhos e os netos, recusam qualquer tipo de preconceito. Seria muito cruel alguém ousar desacreditar esse sentimento tão intenso que é força motora e também de resistência dessas duas mulheres.
Veja o trailer: