No Estácio, nove tiros ontem (14 de março) à noite. Quatro alvejaram Marielle Franco, 38 anos, no banco de trás do carro. Ela voltava de uma reunião de negras em que, pela última vez, repetiu sua fala potente contra o genocídio em curso no Rio de Janeiro. Denunciou a matança de mulheres e o extermínio de jovens na guerra urbana e insana que só cresce no país.
Nove tiros. E pra que tanto? Marielle do PSOL não andava armada, não era da milícia, da polícia, do tráfico, da política suja. Mas também não era uma cidadã comum: enquanto seu corpo de mulher jovem era trucidado pela sanha covarde dos atiradores – e dos mandantes que se escondem atrás deles –, morriam um pouco os 46 mil eleitores que votaram nela. Cariocas que puseram Marielle na Câmara Municipal para ser por eles olhos abertos e boca corajosa.
Quanto tempo vai demorar para surgir outra Marielle? Mulher de posições políticas claras. O seu lado era sempre o dos moradores do Complexo da Maré, o lado do preto, da mulher que cria os filhos sozinha. Ficava sempre com os que perdem direitos toda vez que fardados da polícia e do Exército entram matando geral.
Vai demorar pelo menos mais 38 anos para se produzir outra Marielle. Ou passarão mais 50, 70 anos? Uma mulher leva tempo para se enfiar na política e abrir espaço a cotoveladas. Chega lá só quem sofreu muito, enfrentou muito. Ousou levantar o dedo pra dizer: “Comigo, não”. No Brasil, que tem tão poucas representantes na política, nos tiraram Marielle.
Quanto tempo se leva para criar uma menina e fazer dela uma Marielle? Mãe aos 19, para amamentar abandonou o cursinho pré-vestibular, que frequentava sem pagar. Perdeu uma amiga assassinada e viu que devia tornar-se militante dos direitos humanos. Era uma negra decidida, cursou sociologia. Virou mestre questionando a fracassada política das UPPs. “Que negócio é esse de reduzir a favela a três letras?” foi a pergunta que norteou sua dissertação na universidade. Quanto tempo vai passar até elegermos outra Marielle como essa?
Nove tiros. Sobraram alguns para matar também Anderson Pedro Gomes, o motorista que acompanhava Marielle na missão que desempenhava na sombria noite de 14 de março. A data vai ficar marcada na história das políticas brasileiras. Nove tiros, quatro interromperam a trajetória da parlamentar, que facilmente se elegeria deputada, poderia chegar ao governo e governar os fluminenses de maneira limpa. Poderia ascender ao Senado. Poderia conquistar a Presidência da República.
Raivosos nove tiros à queima-roupa; quatro certeiros roubaram a esperança de sua filha de 18 anos, de sua mãe, de sua família, de suas vizinhas, de todas que se miravam nela para ser mulher forte. Nove tiros. E pra que tantos? Marielle não usava laranjas, não lavava dinheiro na joalheria, não tinha rotina camuflada – como têm os de colarinho branco que se deslocam de helicóptero, passeiam de lancha, deslizam malas de rodinhas com dinheiro sujo.
Mulher na política incomoda ainda mais do que em casa, no trabalho, na reunião de condomínio… Principalmente quando é uma mulher que presta contas dos seus atos em um mandato transparente, como o de Marielle. É como deviam fazer todos os homens que pedem votos. Mas eles dão golpes.
Quanto tempo vai demorar para vermos outra vereadora porreta assumir a presidência da comissão de direitos da mulher na Câmara do Rio? Quem fará seu papel na comissão que vai vigiar a intervenção militar federal?
Estou triste, profundamente triste. Nem posso falar vá em paz, porque essa era uma mulher de batalhas. Melhor dizer: “Vá em luta, Marielle”.