Se não houvesse o amor, certamente Marisa Letícia Rocco Casa jamais teria se metido na política. Ela não gostava. Abraçou a causa, do seu jeito, por Lula, o presidente do Brasil entre 2003 e 2011. Ficaram casados por 43 anos, até ontem (2/2), quando foi decretada sua morte cerebral. Evidentemente, nem toda a trajetória do casal foi um mar de rosas. Mas eles formavam uma dupla forte, viveram a parceria, o companheirismo, a cumplicidade. Marisa era a pessoa que chacoalhava Lula, punha no eixo. Indicava que o deslumbramento poderia derrubá-lo desde que se revelou um líder metalúrgico, nos anos 1970, e passou a ser assediado por universitárias, mulheres intelectuais, jornalistas… Muito crítica, lembrava-o de que ele não era um mito. Quando o marido foi convidado a posar nu para ilustrar uma entrevista polêmica, na qual desafiava o governo militar e os patrões, ela o demoveu: “Com que cara vai sentar na mesa da Fiesp para negociar salários e tentar mudar o país?”.
Em casa, o mando era dela. O salário de Lula sempre foi administrado por Marisa; as decisões mais importantes da família também. Baixou uma portaria proibindo falar de política no fim de semana e, até chegar ao Palácio da Alvorada, onde morou durante o governo do marido, filtrava pessoalmente os telefonemas. Do outro lado da linha falavam os correligionários? Ela mandava ligar na segunda. “Se eu não cuidar, vira reunião de diretório e acaba o descanso”, afirmava. Mas, se chegavam com a família para o churrasco no rancho que mantinha às margens da represa Billings, a história era outra. Corintiana, falava de futebol com eles e, às vezes cantava música sertaneja ou pedia “aquela do Chico Buarque”. Penúltima dos 15 filhos de um chacareiro descendente de italianos e de uma benzedeira que curava bronquite com xarope de ervas, Marisa nasceu em São Bernardo do Campo (SP). Foi babá, embalou chocolates na fábrica Dulcora, casou-se aos 19 anos, ficou viúva meses depois, grávida. O marido, um taxista, morreu ao ser assaltado. Teve mais três filhos com Lula. Era católica, gostava de ler horóscopo e tornou-se fã de Santo Expedito quando, na quarta disputa, Lula se elegeu presidente.
Repetiu milhares de vezes: “O político é ele. Não tenho que comentar decisões do ministro da Fazenda, não preciso falar de acordos políticos, atender jornalistas nem aparecer em público”. Porém, virava leoa se alguém dizia que Lula não trabalhava: “Você acha que viajar o país inteiro, construindo um partido, criando uma alternativa para o povo não é trabalho?”. A primeira bandeira do PT foi ela quem costurou: num pano italiano vermelho que estava parado no armário, pregou uma estrela branca. E convocou uma passeata de mulheres para protestar contra a ditadura enquanto Lula estava preso pelos órgãos da repressão. No dia em que os agentes o buscaram em casa, em São Bernardo, Marisa se jogou na frente. “Um minuto. Vou fazer um café. Lula não pode sair sem tomar uma xícara.”
Essas e outras memórias estão na reportagem que CLAUDIA publicou sobre Marisa Letícia, em dezembro de 2002, pouco antes da posse do marido. O texto começa assim:
“No dia 7 de novembro, uma quinta-feira, Marisa Letícia e Lula acordaram no Hotel Intercontinental, em São Paulo, onde o presidente eleito proporia um pacto à nata da economia brasileira, ali representada por 150 banqueiros e grandes empresários, além de líderes sindicais. O discurso do presidente para convencer os convidados a ajudá-lo a governar a nação estava pronto e afiadíssimo. Marisa é que precisaria de mais alguns minutos para se arrumar e acabou aceitando a ajuda do marido. Lula empunhou a escova de cabelo com a mão direita, o secador com a outra e, pacientemente, fez o penteado com que a mulher apareceria na reunião. O casal, que assume o Palácio do Planalto em janeiro, não mudou o tratamento que se reserva na intimidade. Lula cuida de Marisa. E ela cuida dele nos mínimos detalhes: confere o nó da gravata e aconselha que fale baixo para não ficar rouco e evitar calos nas cordas vocais.”
Wanderlei Nunes ainda não era o cabeleireiro oficial de dona Marisa e havia nela muita apreensão. Ela sucederia a mulher do presidente Fernando Henrique, a antropóloga Ruth Cardoso, que desconstruiu o papel de primeira-dama criando programas que contemplavam o aborto legal, a alfabetização de adultos e a reforma agrária. “No começo, vou ficar meio perdida. Assim que conhecer a estrutura, faço as coisas do meu jeito.” Transferiu-se para os 7,3 mil metros quadrados do Alvorada – que incluem seis suítes, piscina, sauna, cinema, jardins, adega e academia, levando os vasos de orquídeas que mantinha na sala do apartamento de São Bernardo. Na despedida, havia confidenciado a uma amiga, a assistente social Inês de Felipe: “Não sei como vai ser depois. Tenho medo de que as coisas mudem, de que a gente não tenha tempo nem espontaneidade e acabe longe dos amigos”.
Mais de uma dezena de vezes disse que seu papel era compor o de Lula. Nunca esteve tão perto dele como nesse período. Segurando a onda, dando a ele prumo longe dos holofotes. Estavam sempre juntos nas viagens internacionais, nas crises do governo, no tsunami do mensalão, na campanha para reeleição, nas quedas de braço com a oposição e com a imprensa, na eleição da sucessora, Dilma Rousseff, no câncer que atacou Lula. Fora do governo, permaneceu dura (de novo a leoa), tentando minimizar os impactos dos processos da Lava-Jato, que convulsionaram a sua casa. Foi discreta. E digna – até mesmo após a morte, aos 66 anos, quando seu corpo inerte submeteu-se à cirurgia para retirar órgãos, que podem levar alento aos esperançosos da fila do transplante.