O poder corrompe, ouço alguém dizendo no bar quando estou a caminho da padaria, alguém bêbado, mas poderia ser alguém sóbrio, não é preciso estar bêbado para se dar conta de que o poder corrompe, pelo contrário, os sóbrios também estão cientes e também estão corrompidos. O álcool corrompe, a sobriedade corrompe, assim como o dinheiro corrompe, o sucesso corrompe, a beleza corrompe, é que estar aqui atravessando esta rua corrompe, sigo pensando ao atravessar a rua.
Entro na padaria e penso que sim, estar aqui nesta padaria corrompe, mas estar ali no bar também não deve ser fácil, estar lá na rua de cima me parece igualmente terrível, penso, pedindo quatro pães, ou cinco, moça, desculpe, já nem sei o que estou pedindo quando o que sei é que é verdade que o poder corrompe mas que também é verdade que a dor corrompe, que a riqueza corrompe, mas veja, a pobreza também corrompe, a beleza corrompe demais e a feiura talvez corrompa ainda mais, somos todos corruptíveis, nós cheios de prazer que experimentamos gozo naquilo que nos corrompe, e também nós apavorados que somos devorados quando aquilo que nos corrompe é tão gigantesco que nos traga nos engole nos arrasta até que nós e o que nos corrompe viremos uma só coisa, uma massa humana, demasiado humana.
O ódio corrompe, mas o amor, ah, o amor sempre nos corrompeu, o amor corrompe aqui na padaria e também no bar em frente ao qual estou passando novamente – quantas vezes os homens ali bebendo já foram corrompidos pelo amor, eu me pergunto, quantas vezes eu já fui, o moço dessa banca de jornal por onde passo agora, as moças dessas capas de revista, somos todos iguais quando se trata de sermos corrompidos e quando se trata de amor. O amor corrompe quando se retrai nos seus afetos mais tristes porque nem só de afetos alegres é feito o amor; o amor vira um revólver nas mãos de quem não suportou o peso de se ver desarmado; transforma-se em armadura para quem não se aceitou despido, vulnerável, ridículo; a especialidade do amor é corromper os que não se curvaram à beleza do ridículo, aos que se afogaram por se debater em vez de flutuar, aos que não se entregaram ao doce nado no rio mais perfeito porque temiam uma cachoeira logo ali.
A cachoeira que está logo ali nos corrompe, a tempestade nos corrompe, e o sol também nos corrompe, nós que estamos sempre fugindo do sol ou nos aproximando demais do sol, nós que ora recusamos asas, ora derretemos nossas próprias asas, nós que somos corrompidos pelas quedas livres, pelos saltos no abismo e, sobretudo, por nosso eterno tatear no escuro.
Pensar corrompe, não pensar corrompe, dar bom dia para o porteiro corrompe, subir neste elevador está me corrompendo neste exato momento enquanto penso que respirar corrompe o mais inocente dos espíritos quando esse espírito se move dentro de um corpo que nunca foi bem costurado, que está sempre sangrando, sempre contaminado pelo que lhe acontece, pelo barulho e também pelo silêncio que o guia por uma contínua corda bamba até todas as padarias, passando por todos os bares, todas as bancas e todos os caminhos de volta para nossa casa, que casa, esta minha chave não funciona, ei, esta não é a minha casa, eu vejo agora que nunca morei nesta casa, eu que, como todos nós, sou diariamente corrompida por minha infinita e agoniada falta de endereço.
Liliane Prata é editora de comportamento de CLAUDIA e escreve crônicas no site semanalmente. Para falar com ela, mande um e-mail para liliane.prata@abril.com.br