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Coluna da Liliane Prata

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O abismo de todos nós

Uma viagem para o Caribe e jantares deslumbrantes, por favor. Você também tem aí um passado novinho em folha? Quem sabe um saco sem fundo...

Por Liliane Prata Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 10 mar 2017, 17h57 - Publicado em 10 mar 2017, 17h50
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  • Na conhecida Vila do Desamparo, uma placa indicava a lojinha que, diziam, tinha de quase tudo. Uma mulher entrou.

    – Pois não! O que você procura?

    – Ah, um pacote pro Caribe, moça. E um prêmio importante. Uma carreira de sucesso. Uma aliança. Jantares e passeios deslumbrantes.
    – Escolhas muito atraentes! Embrulho para desfrutar?
    – Não, embrulha pra me salvar.
    – Perfeito. Claro que, nesse caso, vai sair muito mais caro.
    – Mas tem garantia?
    – Nenhuma! Na verdade, essa mercadoria é falsificada. E vem com garantia ao contrário: seus defeitos estão assegurados. Vai querer mesmo assim?

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    – Hmm… Você tem aí um passado novinho em folha? Quem sabe um saco sem fundo…
    – Isso aí não temos. Meu forte são as máscaras. Máscaras de todo tipo, algumas você não precisa tirar nem para dormir. Também vendo doenças. A que mais sai é o ódio incurável.

    Enquanto pensava, a moça notou uma porta ao fundo.

    – E aquela porta ali? Dá onde?
    – Ah, no nosso desfiladeiro.
    – Tem um desfiladeiro aqui na vila? Nunca ouvi falar!

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    – Precisamos melhorar a divulgação… Quer ir lá ver?
    – Será?
    – Você é quem sabe.
    – Bom, então… Então eu vou.
    – Leve esse binóculo. Aqui nesse panfleto, você encontra algumas atividades para fazer lá. Elas deixarão sua visita mais agradável.
    – Obrigada.

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    A moça abriu a porta e deu de cara com a ventania, o silêncio e a escuridão. Ela se apoiou em uma grade, olhou lá para baixo e ficou muito impressionada com o que não viu.

    Alguns instantes depois, recuperando-se do susto, ela tirou o folheto do bolso. De fato, havia várias coisas para se fazer ali.

    A primeira era tomar uma pílula do esquecimento. Parecia bom para quem tinha medo de altura: ir embora como se nunca tivesse chegado. Em letras miúdas, no entanto, estavam os efeitos colaterais do remédio: sensação de esvaziamento, dificuldade para dormir, as mais variadas compulsões e neuroses…

    Uma outra opção era se jogar. Ela se aproximou da beira e, com o binóculo, viu lá embaixo vários sobreviventes. Todos tinham um sorriso melancólico no rosto. Não havia nenhuma escada à vista, mas eles pareciam não se importar.

    Ela voltou os olhos para o folheto. Também era possível escolher uma das lentes temáticas disponíveis no cesto à sua frente. Resolveu testá-las. A qualidade do 3D era sensacional. Um par transformava o penhasco em um monstro ainda mais assustador do que o penhasco em si, e ela o tirou antes de ser devorada pela ânsia de correr e nunca mais parar. Outro substituía a paisagem por um palhaço que não parava de contar piadas, e ela o tirou antes que engasgasse de tanto rir. Outro, ainda, fazia com que ela se enxergasse em um ringue de boxe, e de repente ela começou a lutar com o ar.

    – Acho que vou embora – ela comentou com a vendedora, por fim, voltando para a loja.

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    – Você não vai se jogar lá embaixo?
    – Não, não.
    – Ah, então você tomou a pílula do esquecimento! É minha opção diária.
    – Também não.
    – Você só viu e resolveu ir embora?
    – Isso.

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    – Mas… Você sabe que o desfiladeiro vai continuar aí, não sabe?
    – Sei, sim. Ô se sei.
    – E como você vai voltar a tocar sua vida, agora que sabe?

    A moça pensou um pouco.

    – Vou tentar seguir aceitando que vi o que não vi. Acho que é isso.

    Ela saiu da loja e a vendedora, tomando sua pílula de esquecimento do dia, passou a tarde pensando: é cada cliente estranho.

    Liliane Prata é editora de CLAUDIA e escreve semanalmente no site. Para falar com ela, mande um e-mail para liliane.prata@abril.com.br

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