Termino o café bocejando, ontem trabalhei até tarde, olho pela janela, esta manhã está tão chuvosa, esta manhã acordei sem nenhuma esperança, cadê a caneta? No pequeno cesto que mantenho erradamente na mesa da sala – ele ficaria bem melhor sobre o móvel da TV –, pego uma caneta e risco um papel. A caneta não funciona. Risco de novo, dessa vez mais forte, mas nem por isso ela me obedece, e o papel, que me parece mais branco do que antes, agora tem um rasgo. Ando até a área de serviço, jogo a caneta no lixo. De volta ao pequeno cesto, pego outra caneta e risco o mesmo papel, mas essa nova (velha) caneta parece que também não funciona, insisto até rasgar o papel já rasgado, mas será possível? Já nem lembro por que estava precisando de uma caneta, ah, é, era para anotar uma ideia, bom, já esqueci a ideia, foda-se a ideia, foda-se a caneta 1 e também a caneta 2, essas canetas não me merecem, eu preciso sair para resolver umas coisas, nossa, agora me passou uma coisa pela cabeça: eu deveria parar de guardar canetas que não funcionam. É meio-dia de sábado e eu, ainda de pijama, começo a tomar consciência de que não é mais possível continuar convivendo com canetas que não funcionam. Eu não preciso anotar ideia alguma, o que eu preciso, neste momento, é encarar a verdade. Eu me conheço. Mais do que nunca, aqui, nesta sala, eu me reconheço: não foi a primeira vez que testei essas duas canetas, estou certa de que num dia qualquer da semana passada, ou quem sabe desta semana, mesmo, eu peguei essas canetas, testei, vi que elas não funcionaram e o que eu fiz, eu as devolvi para o cesto, eu não posso mentir para mim mesma: eu as devolvi para o cesto, isso representa uma total falta de respeito por mim mesma e isso não vai mais acontecer. Começo a testar freneticamente todas as canetas de dentro do cesto: essa não funciona, essa funciona mais ou menos e mais ou menos não basta pra mim, não nesta manhã de sábado; essa funciona, essa não funciona. Na área de serviço, experimento um enorme prazer ao contemplar a lixeira, que devorou nada menos que quatro canetas inúteis ou parcialmente satisfatórias: que beleza! Que sábado produtivo! Agora, sim, sinto-me segura, agora posso contar com nove canetas que funcionam perfeitamente, todas disponíveis no cesto que está no lugar errado, espera, se eu sei que o cesto está no lugar errado, por que não o coloco no lugar certo? Esse tipo de comportamento, é sério, ele tem que acabar. Boto o cesto no móvel ao lado da TV e, parada de pé em frente à porta, admiro minha nova e funcional sala, dotada de canetas que funcionam e um cesto devidamente posicionado no local correto: que bom, que bom! Giro a chave para ir finalmente resolver minhas coisas na rua, lembro que estou de pijama, vou para o quarto me trocar, antes passo na cozinha para tomar um copo d´água e aí me lembro das formas de gelo que pateticamente botei no freezer sem encher: aquelas formas não combinam com este novo capítulo da minha vida, todo escrito com canetas que funcionam. E eu fui capaz de me transformar nessa pessoa que só tem canetas que funcionam, certo? Meu cesto agora está sobre o móvel correto e eu tenho salvação. Encho as formas de gelo e, cheia de satisfação, vou para o quarto me trocar, mas antes passo no banheiro e vejo, dentro do boxe, uma embalagem de xampu vazia, eu sei que ela está vazia, eu balancei essa embalagem nos meus dois últimos banhos e não saiu nada, por que eu não joguei isso fora, por que eu faço isso, mano do céu, isso tá errado, esse tipo de coisa não será mais tolerado neste apartamento, não na minha gestão. Pego um enorme saco azul na área de serviço, onde jogo a embalagem de xampu e também os papéis de bala que jazem dentro das minhas bolsas, sim, agora estou vasculhando cada uma das minhas bolsas em busca desses papéis de bala, alguns meio melados, todos terríveis: são embalagens de balas que chupei e devolvi para a bolsa porque eu estava na rua ou no ônibus ou no uber, mas porra, eu devia ter jogado isso no lixo antes, eu devia ter dado um jeito. A partir de hoje, eu me livro dos papéis de bala assim que pisar nesta casa, se eu não posso morar com canetas que não funcionam, cestos no lugar errado e embalagens vazias de xampu, eu não posso mais admitir papéis que não contém mais balas, eu que preciso ser uma pessoa coerente, eu que agora também não aceito mais relacionamentos tóxicos com recibos velhos, garantias de aparelhos que nem tenho mais e papeizinhos semi-amassados de qualquer espécie. Também não vou mais aceitar maquiagem que acabou e não joguei fora, revista velha, remédio vencido, eu não vou mais justificar aquela xícara que estava rachada e que, na pressa, devolvi para o armário, pronto, agora a xícara também está fora da minha vida, maravilha, agora eu estou aqui, arrastando esse saco enorme azul, eu, esta neo-caça-fantasmas doméstica que se lança corajosamente à procura de todas as coisas que não são mais coisas, eu que não temo mais o lixo, eu que não fugirei mais desse revisteiro quebrado, desse pacote de arroz vencido, desse saca-rolha que não funciona, desse negocinho de plástico rosa que eu não tenho ideia de pra que serve, chega, chega!
São cinco da tarde quando dou o nó no terceiro saco azul do dia. Não resolvi minhas coisas na rua, não tenho um saca-rolha para abrir a garrafa de vinho que eu gostaria de tomar agora, então pego uma cerveja, boto uma música, sento no chão do escritório e, diante de todas essas gavetas aquelas prateleiras aqueles cantinhos esses nichos todos preenchidinhos com coisas úteis cheias na validade funcionando perfeitamente com o cheiro certo na posição correta no móvel mais adequado eu começo a me sentir um pouco deslocada, puxa vida, tudo tão no lugar e eu aqui, às cinco da tarde, ainda de pijama, tomando uma cerveja sem nem ter almoçado, eu que estou perdendo meu sábado, que sábado improdutivo, que merda, alô? Oi, querida! Desculpa, não vi sua mensagem, comecei aqui uma faxina que não acabava nunca, putz, é hoje! Tinha esquecido, que hora? Tá, vou me arrumar e saio, beijo.
Desligo o telefone, como uma banana, tomo banho, saio de casa.
A noite é muito melhor do que eu tinha planejado, na verdade eu nem tinha planejado nada, assim que é bom.
Volto para casa só no outro dia e, quando piso na sala, com um jornal debaixo do braço e chupando uma bala que peguei no Uber, acho tudo ótimo. Devo ter botado o papelzinho das outras três balinhas na bolsa que estou jogando em cima da mesa, mas agora isso não me importa, quer saber, até sinto falta daquele cesto aqui em cima da mesa, pronto, aqui está ele de volta, a casa é minha, boto os cestos onde eu quiser. Que bom que as canetas estão funcionando, e que bom que as forminhas de gelo estão cheias, mas se os riscos ficarem semi-apagados e se algumas forminhas ficarem vazias eu não vou morrer, quer saber, eu não vou mais me incomodar tanto com essas coisas, eu, que, na surpreendente noite de sábado, seguida pela surpreendente madrugada de domingo, descobri que posso viver assim, com uma ou outra coisa inútil, torta ou errada nesta casa, nestas gavetas, em mim. Me perdoem, papeizinhos inofensivos, garantias que não me protegem de nada mas que também jamais me atacaram, negocinho de plástico rosa que o lixeiro já levou e que continuo sem saber para que serve, mas que nunca me fez nada de mal. O dia de faxina foi ontem, ontem! Hoje é domingo, hoje eu sou outra, hoje vou fazer um café e vou ler o jornal, que delícia esse sol brilhando lá fora.
Liliane Prata é editora de comportamento de CLAUDIA e escreve semanalmente aqui no site. Para falar com ela, mande um e-mail para liliane.prata@abril.com.br