São quase 7 horas de uma manhã fria e escrevo à mão na cozinha de casa. Não fiz barulho ao acordar porque, exceto eu, todos aqui estão em férias e dormem.
Nunca deixei de escrever em letra cursiva, mas admito que hoje o computador é um instrumento dominante de criação. Como ele está no quarto em que as crianças dormem, cá estou eu brincando de poeta do século 19, escrevendo sob uma luz não ideal, submersa em meus pensamentos. Faltou a caneta-tinteiro. Fica para a próxima.
Então vamos a ela: a situação ideal. Coisa linda mesmo, uma busca constante, quase um sonho… Ah, quanta baboseira. Quem vive em situação ideal? A resposta é fácil: ninguém. Existem pessoas vivendo em condições melhores e piores, e isso, sim, é terrível. Mas vamos nos ater aqui a uma realidade de vida razoável.
Um dia, me lamentava por uma situação e disse: “Eu queria que…”. Fui interrompida pela minha enteada de 10 anos alertando carinhosamente que a vida não é sempre “eu queria que”. Concordei, e o dia seguiu de acordo com o que era possível naquela hora. Entender que nem tudo é um desafio e que as coisas podem ser simplesmente insolucionáveis é uma atitude inteligente e libertadora também.
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Recentemente fui acusada de “hippie” (isso é uma acusação?), porque durante uma temporada teatral divido a bilheteria em partes iguais e os atores recebem o mesmo que o iluminador, o bilheteiro, o sonoplasta etc. Ora, eu penso que o espetáculo começa na bilheteria, não no palco. A maneira como você é recebida quando chega ao teatro é o que a levará para a sala de espetáculo.
No teatro, ninguém é melhor do que ninguém até que se prove o contrário. Estamos todos trabalhando naquela noite. A responsabilidade é a mesma; portanto, somos todos iguais. Sempre parto desse raciocínio.
Hoje em dia, o esquema de trabalho em cooperativa está cada vez mais forte nas artes. Gosto muito disso. Vamos todos para o teatro, nossa força de trabalho gera um capital, nós o dividimos e estamos prontos para nos divertir. Ou não, depende da féria do dia. Tendo a acreditar que a vida é algo muito simples, mesmo sabendo que não é.
Acho importante tornar a vida possível. Não faço mais teatro como fazia nos anos 1990. Bem, quem já leu meus textos publicados aqui sabe o que penso dos anos 1990: eles simplesmente não existem. E minha vasta experiência como atriz e produtora só vale alguma coisa se puder ser aplicada agora.
Na mesa da cozinha, por exemplo, enquanto escrevo. Meu passado não me garante. Eu não vivo dele. Ele é apenas o que me trouxe até aqui. E o mundo mudou bastante. A história agora é outra.
Por mais que seja bastante caprichosa com meu trabalho, não temo o erro. Ele é minha marca registrada também. Ninguém erra como eu. Isso é importante.
Este texto é uma declaração de amor a um jeito possível de fazer as coisas. Como esta coluna, que foi escrita antes que todos acordassem. Agora ouço um barulho vindo do quarto. Vou fazer um café para eles e vamos dar risadas à mesa. Algo vai dar errado hoje. Mas não sei o que é. Quando chegar a hora, eu decido o que fazer.
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