Hercule Poirot é a figura central de 33 romances, 2 peças e mais de 50 contos publicados entre 1920 e 1975 por Agatha Christie. No final dos anos 1980, todas as obras foram gravadas para a ótima série do detetive belga, que foi ao ar na televisão britânica e que é possível encontrar no Youtube, com o maravilhoso David Suchet. No cinema, astros como Peter Ustinov, Albert Finney e até John Malkovich deram vida à Poirot, mas é o diretor Kenneth Branagh que é o “atual” titular do papel. E ele chega ao seu terceiro longa com A Noite das Bruxas (A Haunting in Venice), que entra em cartaz um mês antes do Halloween e tenta inovar o personagem clássico da literatura.
Para os leitores de Agatha Christie, há um elemento paradoxal e um spoiler: a história tem como base o conto Hallowe’en Party, mas é quase apenas uma citação, porque a trama é original e bem diferente. Isso quer dizer que não é o mesmo “culpado”. Ainda assim, é um convite para usar a fórmula tradicional de Poirot para chegar a “quem matou” puramente seguindo a lógica. Eu acertei, mas isso porque sou mesmo “treinada” pelos livros da autora. E antes que reclamem da “heresia”, o bisneto de Agatha Christie é um dos produtores do filme e aprovou as mudanças. Ter um “novo” Poirot funciona para ele, e para nós.
A Noite das Bruxas começa 10 anos depois de A Morte no Nilo, e Poirot está “aposentado”, vivendo em Veneza, ainda pessimista e amargurado depois lidar com vingança coletiva dos culpados em Assassinato no Expresso Oriente e a ganância dos assassinos no Egito. Tudo está indo bem para ele até que, na véspera do Dia das Bruxas, é ‘convocado’ a sair de seu exílio autoimposto quando sua amiga, a escritora Ariadne Oliver (Tina Fey), pede ajuda para desmascarar uma farsa de sessões espíritas lideradas pela médium Joyce Reynolds (Michelle Yeoh). Intrigado com a proposta, ele aceita e, no palazzo decadente e assombrado da famosa cantora de ópera Rowena Drake (Kelly Reilly), Poirot se depara não apenas com uma série de assassinatos, como terá que se render à tese de maldição e espíritos ou seguir na aposta de lógica e racional.
A entrada de Tina Fey é potencialmente a primeira de várias aparições no futuro. Ariadne representa a própria Agatha Christie e, mesmo que agora ela passe a ser americana (nos livros é inglesa), é divertido. E convenanhos, Kenneth Branagh é um diretor que prima pela narrativa de suspense e performances dramáticas, quase exageradas, e, em A Noite das Bruxas, volta a flertar com o terror psicológico, como já tinha feito em Voltar a Morrer, de 1991, e Frankenstein, de 1994. Com uma Veneza lindamente filmada, ele usa e abusa dos interiores escuros, da luz de velas e uma noite de tempestade para nos levar numa viagem sombria e ocasionalmente assustadora.
O conto original que é a base do filme foi publicado pela primeira vez em 1969, mas há pitadas de outras histórias de Christie que abordam o sobrenatural, tipo The Last Seance. Assim como Ariadne (seu alter ego), Agatha Christie era cética e tinha prazer em ‘desmascarar’ médiuns e espiritas, e Branagh consegue equilibrar as dúvidas no tom certo.
Um dos pontos altos do filme é justamente outra mudança do diretor. Em quase todos seus filmes a trilha sonora é assinada por seu amigo e premiado compositor, Patrick Doyle, mas A Noite das Bruxas é assinada por Hildur Guðnadóttir, vencedora do Oscar por Coringa e uma das mais requisitadas do momento. Hildur, uma celista elogiada, é vital para o clima e o resultado do filme, com melodias que acentuam a tensão e a confusão mental das personagens. Mais uma aposta pelo “novo” que parece acertada em um filme superior à Morte no Nilo e que sinaliza uma nova possibilidade na franquia com Branagh.