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Ana Claudia Paixão

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A jornalista Ana Claudia Paixão (@anaclaudia.paixao21) fala de filmes, séries e histórias de Hollywood
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True Crime: o que ninguém fala sobre as produções de crime real

Feminicídio ainda é ignorado pelo público se os assassinos forem homens poderosos

Por Ana Claudia Paixão
1 jun 2024, 12h51
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  • O consumo de série, programas, jornais, livros, filmes e documentários de true crime sempre foi visto como uma alavanca para audiência e vendas de jornais. A gente reclama de que os noticiários são sempre sobre desgraças, crimes e inseguranças, mas os números sempre mostram que bizarramente as pessoas gostam do gênero.

    A origem e a popularidade de “true crime”

    O apelo do “crime verdadeiro” pode ser atribuído a vários fatores, cada um tocando em diferentes aspectos da psicologia humana e do comportamento social que vão desde a fascinação pelo Lado Sombrio da Natureza Humana, muitas vezes perturbadores, e que – à distância – é fascinante para muitos, assim como a Curiosidade Psicológica, porque as pessoas ficam intrigadas com os aspectos psicológicos do crime e querem entender o que leva os indivíduos a cometerem atos hediondos, como esses criminosos pensam e se comportam.

    Também há o Sentido de Justiça porque muitos casos têm punição é satisfatório ver que haveria mundo justo.

    Mas, em geral, o que aparenta engajar o público é a Empatia e identificação com crimes reais que muitas vezes humanizam as vítimas, permitindo que o público se identifique com as suas experiências e lutas, uma conexão emocional poderosa que tornar as histórias mais envolventes.

    A popularidade do gênero, como disse, persiste há séculos, mas sua encarnação moderna começou a ganhar força significativa na virada do século 20, em especial com a popularidade do clássico de Truman Capote, À Sangue Frio, quando escritor criou o gênero “não ficção”. O relato detalhado e narrativo de Capote sobre os assassinatos da família Clutter no Kansas estabeleceu um novo padrão e é uma aula de narrativa.

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    A digitalização só acelerou o consumo e as ofertas, mas programas de televisão como Unsolved Mysteries e America’s Most Wanted também podem ser apontados como contribuintes essenciais para a popularidade do True Crime, que é a pauta de inúmeos Podcasts, Canais do Youtube e Documentários, trazendo o gênero para o mainstream.

    E há uma característica cada vez mais comum em todos os conteúdos: em geral, as vítimas vêm em 2º plano, aparecem na abertura da história, mas rapidamente deixa de ter protagonismo. Não te incomoda isso?

    Recentemente, dois documentários me fizeram sentir a mesma coisa, que a vítima perde sua vida e sua voz, que ela acaba como uma fatalidade no universo de um assassino. Falo hoje, em especial, de dois documentários que recomendo a todos assistirem: The Jinx, cujas duas temporadas estão na MAX, e O.J. Simpson: Made in America, da ESPN, que está na plataforma da Disney (Star Plus). Em ambos, vemos dois homens milionários – que assassinaram suas esposas – escapar da Justiça graças à fama e fortuna. E elas? Bem, vamos falar delas hoje.

    As duas vítimas, Kathie McCormack Durst e Nicole Brown Simpson, ainda hoje mal são lembradas pelo público, enquanto o mesmo não acontece com seus algozes, Robert Durst e O.J. Simpson. Ambos homens foram protagonistas de julgamentos acompanhados de perto pela mídia, ficaram ainda mais famosos, encontraram jurados que tiveram empatia por eles, foram inocentados e livres até suas respectivas mortes, em 2022 e 2024. Me dá uma revolta gigantesca considerando que nem Kathie ou Nicole ultrapassaram os 35 anos de vida graças à eles.

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    Onde Nicole e Kathie se “encontram”

    Fiquei pensando muito nas duas por motivos diferentes. Embora as mortes delas tenham mais de uma década de diferença entre elas, podemos facilmente conectar a maneira como foram e são ainda retratadas.

    Kathie McCormack Durst era uma jovem de família de classe média que se casou com Robert Durst, um rico herdeiro imobiliário de Nova York. Ela foi vista pela última vez no dia 31 de dezembro de 1982 e até hoje não sabemos o que houve, como foi morta ou onde está enterrada. Descrita na época como dócil e simpática, também foi apresentada como oportunista, drogada e difícil pelos amigos e defensores de Durst. Que surpresa, né? Culpar a vítima se ela é mulher? Era usual nos anos 1980s.

    O mistério do desaparecimento de Kathie fez com que o diretor Andrew Jarecki fizesse o filme Entre Segredos e Mentiras (All Good Things), com Ryan Gosling e Kristen Dunst, em 2011. Anos depois fez o premiadíssimo The Jinx, em 2015, o documentário que começou simpático à Robert Durst, mas, que, em uma reviravolta sensacional, o levou à prisão pelo assassinato de sua amiga, Susan Berman.

    Por melhor que Jarecki tenha tentado, nem no filme ou nas duas temporadas de The Jinx conseguimos entender quem foi Kathie, como ela se apaixonou e se casou com o estranho Durst, nem mesmo pescamos a totalidade dos abusos físicos e psicológicos que ela sofreu antes de “desaparecer”. Como muito acontece no gênero true crime, o fascínio é pelo agressor. A vítima é só a introdução.

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    O mesmo aconteceu com Nicole Brown Simpson. Nicole era a ex-mulher de O.J. Simpson, um famoso jogador e ator de futebol, foi encontrada brutalmente assassinada em junho de 1994, na porta de casa, praticamente degolada. Rapidamente a polícia chegou à O.J. como o principal suspeito e logo o relacionamento do casal, marcado pela extrema violência doméstica, foi descoberto pelo público.

    As ligações para o 911 e os relatórios policiais mostram a imagem de uma mulher vivendo com medo de seu ex-marido abusivo, mas ainda assim foi julgada por ter sido jovem e “conseguido fama e fortuna com o casamento”. No julgamento do século, que aconteceu há 30 anos, nunca ouvimos verdadeiramente Nicole ou quem ela era. O que ficou foram os telefonemas desesperados e as fotos com os ferimentos depois das agressões do marido. Desesperador.

    Seria alguma surpresa se te lembrasse que tanto Robert Durst como O.J. Simpson foram inocentados pela Justiça? Na melhor das hipóteses, as duas mulheres foram retratadas como vítimas de circunstâncias trágicas, mas suas histórias foram sensacionalizadas pelos meios de comunicação, que muitas vezes se centraram nos aspectos dramáticos e violentos das suas vidas e pouco sobre quem realmente eram.

    Em vida, Robert Durst nunca foi imediatamente acusado do desaparecimento de Kathie, mas depois do The Jinx, ele foi preso e julgado pelo assassinato de Susan Berman, que estava ligada ao caso de Kathie. Para a família da estudante de medicina, a condenação de Durst 40 anos depois parecia um alento, mas breve. O milionário morreu de COVID-19 antes de começar a cumprir a sentença, o que fez o julgamento ser anulado. Até hoje não têm as respostas básicas sobre o que aconteceu ou onde encontrar o corpo da primeira mulher.

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    Já o assassinato de Nicole levou o mundo ao infame Julgamento do Século, onde a defesa do jogador colocou em pauta o Racismo da polícia de Los Angeles, não o assassinato de uma mulher. O documentário da ESPN é sensacional para contextualizar a importância do evento, mas Nicole é apenas uma citação breve, algo que a família quer mudar com outra produção – The Life & Murder of Nicole Brown Simpson – ainda sem previsão de estreia no Brasil (que eu tenha conseguido apurar!)

    O panorama da mídia evoluiu significativamente entre a época do assassinato de Nicole Brown Simpson em 1994 e o interesse renovado no caso de Kathie McCormack Durst na década de 2010., mas não o suficiente. A história de Nicole foi coberta principalmente por meios de comunicação tradicionais, como televisão e jornais, enquanto a história de Kathie ganhou força por meio de plataformas modernas, como serviços de streaming e mídias sociais.

    É triste ver como Kathie McCormack Durst e Nicole Brown Simpson têm em comum. Suas histórias partilham semelhanças em termos de temas de violência doméstica e batalhas jurídicas, assim como contribuem para conversas contínuas sobre a violência doméstica e a forma como o sistema jurídico lida com esses casos. Todas nós devemos mudar a narrativa onde as vítimas são relegadas ao segundo plano. Já é hora de mudar.

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