“Tár” nos pergunta: é possível separar a arte do artista?
Uma das questões que é colocada no filme é ultra incômoda e, mais ainda, relevante
O filme Tár conta a história da derrocada de uma maestrina famosa, Lydia Tár, interpretada pela inigualável Cate Blanchett. Lydia é uma artista de temperamento forte (e difícil), convicta no seu classicismo e aversão ao comportamento dos millenials, que considera robotizado e sem alma. Não que ela não entenda que o mundo mudou e que a tolerância para comportamentos tóxicos (como os dela mesma) seja inexistente. É que Lydia defende uma tese que tenho certeza que você já ouviu antes: se usarmos os critérios comportamentais de hoje para julgar os compositores do passado, a Arte Clássica vai morrer, pois é impossível para a grande parte dos compositores brancos, héteros e machistas de escapar da cultura do cancelamento. E aí?
Bom, o filme de cara nos mostra quem é Lydia Tár nas duas cenas de abertura. Em uma, na entrevista para a New Yorker, vemos como ela se vende. Depois, na aula da Julliard, como ela trabalha. A partir daí, vamos descobrindo mais (podres) sobre ela. Em uma das cenas mais longas e complicadas de Tár, Lydia massacra um jovem aluno que se posiciona contra Bach. Com frases de efeito destiladas em um veneno passivo agressivo, ela alerta ao rapaz: “Se o talento de Bach pode ser reduzido a seu gênero, país de origem, religião, sexualidade, então o seu também pode”, ela encerra, sem perceber que a plateia não está do seu lado.
Separar a Arte do Artista. É possível? É recomendável? Infelizmente sou do time que titubeia com isso. Uma amiga brinca que temos a playlist dos “proibidões”, aqueles sucessos que hoje ouvimos escondidas se contar com alguém cancelado. Isso inclui filmes e livros também. Não é à toa que muitos artistas defendem o “mistério” sobre suas vidas. Vou revelar que um dos músicos que estão nessa playlist cheia de culpa é Michael Jackson.
Na semana em que revi Tár, foi anunciada a produção de uma biopic do cantor (que será interpretado por seu sobrinho), o que levou aos que o acusam de abuso sexual a se revoltarem. Eles questionam se o filme vai abordar a pedofilia da qual Michael foi acusado (e morreu negando). Depois de ver o documentário Leaving Neverland, quando ouço canções como In the Closet me questiono sobre o quarto escondido em Neverland onde os crimes teriam acontecido. É possível rever A Rosa Púrpura do Cairo ou Hannah e Suas Irmãs, até mesmo Matchpoint, sem lembrar que Woody Allen manipulou a opinião pública contra Mia Farrow?
Vou mais atrás. A lendária Joan Crawford foi “revelada” como maníaca e sociopata em uma biografia póstuma, escrita pela filha com quem teve conflitos uma vida inteira. Nunca mais olhei para um cabide de arame sem lembrar de Mamãezinha Querida. Amigos da estrela dizem que o livro de Christina Crawford foi pura difamação, mas será mesmo? E conseguimos rever filmes de Johnny Depp sem pensar no que Amber Heard falou? E Brad Pitt sem esquecer que é acusado de ter agredido Angelina Jolie e os filhos em um jatinho? Se a impressão é que não sobra ninguém talvez seja a verdade mesmo. Como sou dos que seguem a regra do “jogue a primeira pedra se não tiver pecado” fico ainda mais triste, porque meu telhado é de cristal…
Mas, voltando à Tár, reforço o brilhantismo do roteiro, ainda mais que as atuações. Todd Field nos faz acompanhar o cancelamento pela ótica da cancelada, sem jamais pedir simpatia por ela. Lydia Tár vai destruindo o mundo à sua volta, atormentada (literalmente) por fantasmas e decisões erradas. O diretor gosta de dramas densos e surpreendentes, já foi indicado ao Oscar por Entre Quatro Paredes e Pecados Íntimos, e sem surpresa tem Cate Blanchett como a favorita para o posto de Melhor Atriz desse ano. À parte das minhas culpas compartilhadas com vocês, Tár é uma sinfonia moderna sobre os desafinos culturais tóxicos, sejam de millenials ou da geração pré-digital. Vale cada nota e todos os elogios.