Li O Senhor dos Anéis há muito tempo e amei a trilogia feita por Peter Jackson para o cinema. Na época, houve um problema com a personagem Arwyn, de Liv Tyler. É que nas páginas do livro ela tem uma conexão telepática forte com Aragorn (Viggo Mortensen), mas não vai para campo de batalha como Éowyn (Miranda Otto). Porém, no primeiro longa, por exigência do estúdio, foi preciso incluir uma cena (espetacular, por acaso) dela sacando a espada e enfrentando os Nazgul. Os puristas odiaram e perseguiram a atriz, a apelidando de “Xena”.
A partir do segundo, filme Peter Jackson conseguiu recuperar a essência da personagem como foi criada por J. R. R. Tolkien e tudo voltou ao “normal”. O que ficou como trivia foi que a batalha para decifrar o empoderamento feminino ainda esbarrava com o conceito binário de força física ser mais heroica do que a psicológica. Ambas não tinham o mesmo peso. Na trilogia do cinema, Galadriel foi vivida por Cate Blanchett e é uma elfa tão poderosa como evoluída. Já na série O Senhor dos Anéis – Anéis do Poder, da Amazon Prime Video, é Morfydd Clark que dá vida à personagem e a conhecemos muito jovem e diferente da “adulta”. Para a surpresa dos que não leram os livros – ela é impetuosa, vingativa e complicada. Desculpem, mais do que isso. Em geral, ela é insuportável.
Galadriel está sendo apresentada como a heroína da saga, a mulher que sabe mais do que os homens, luta melhor do que eles e é uma líder focada. No entanto, não se relaciona com ninguém que não seja útil para vingar a morte de seu irmão. Ninguém mesmo, não é forma de dizer. Pior, parece sempre humilhar os outros lembrando sua “superioridade”. É a mulher tóxica que primeiro humilha a pessoa e depois demanda falar com o gerente, sabe? A personagem é completamente desconectada de (quase) todos, o que me faz me sentir culpada, porque ela era para ter a nossa torcida, mas só nos irrita.
Galadriel não está sozinha no problema: parece que quando a mulher é herói, “precisa” perder empatia, ser agressiva e inconsequente. Não concordo com esse exemplo subliminar que vem ganhando fôlego nas séries e nos filmes. Quando estiver lendo essa coluna, um novo episódio estará na plataforma, mas a vimos antes disso surpresa como todos, ao ver a explosão do vulcão, mas diferentemente das pessoas ao seu redor, que estavam tentando se ajudar para sobreviver, Galadriel ficou parada, em slow motion, esperando ser engolida pela fumaça. Salvar vidas não está na sua lista de prioridades, apenas matar Sauron.
Quando comentei meu sentimento em redes sociais encontrei mais vozes de apoio do que pessoas me ajudando a revisar minha rejeição à Galadriel. O fenômeno, pelo que parece, é mundial. E não é que ela seja anti-heroína, Galadriel é o principal nome dessa fase da história, com protagonismo que confere à série uma personagem feminina forte. Bronwyn (Nazanin Boniadi) dá de mil e não tem de longe o mesmo prestígio.
A narrativa escolhida para Galadriel, que parece que ainda passará por um arco de humildade, é além da série. Já falei aqui que, em geral, as heroínas acabam infelizes no amor e apresentadas como mais agressivas do que capazes de lutar. Quantas heroínas do cotidiano são fortes sem precisar perder a conexão com as pessoas? Inúmeras! Aliás, a força do heroísmo feminino sempre esteve na ênfase da empatia, tirar isso das mulheres é errado. Sofro para gostar de Galadriel, mesmo com toda noção do que está acontecendo. A ver como ela se “modifica” sem perder a força. Quero muito ainda me conectar com ela.