Pam & Tommy: é possível assistir sem culpa?
Atriz se opôs à produção que revive trauma dos anos 1990, mas não foi ouvida
Todos temos um lado voyeur e, quando consumimos séries, filmes, livros ou notícias, sem usar pirataria, consideramos que tudo que vemos faz parte do entretenimento disponibilizado legalmente para nós. Infelizmente, também somos rápidos em nossos julgamentos e, frequentemente, esquecemos que na verdade a celebridade da qual falamos ou lemos a respeito é uma pessoa como nós – e por isso quando repetimos notícias, fazemos comentários, criamos teorias ou defesas estamos efetivamente causando dor.
Estou compartilhando a minha culpa, especialmente depois de chegar à metade da série Pam e Tommy, da StarPlus, que tem me divertido bastante. A série reconta a relação de duas grandes estrelas dos anos 1990, Pamela Anderson e Tommy Lee, cuja fita gravada na lua de mel foi roubada, pirateada e transformada em fenômeno pop da virada do milênio. Baseada em um artigo da Rolling Stone muito bem escrito (vale buscar e ler), sobre o que realmente aconteceu em 1996, a série contraria a atriz, que se opôs à produção, mas não foi ouvida. No 5º episódio, vemos justamente como Pamela foi continuamente humilhada e ignorada em seus pedidos, e nada mudou 27 anos depois. Terminei o episódio me sentindo mal comigo mesma.
Mesmo que a leitora não tivesse nascido na época, acredito que ninguém deixou de ouvir sobre o ocorrido. Eu vivi aqueles anos, lembro das pessoas comentando e trocando cópias do vídeo (nunca vi a fita, mas lembro das conversas). Essa VHS teve um impacto cultural ímpar porque veio com o nascimento da Internet, ainda discada naqueles dias, e foi impossível para o casal impedir que as imagens fossem compartilhadas e até feitas públicas. Para Pamela, a série a faz reviver o trauma, justamente quando as novas gerações já não se importavam mais com o fato.
Impedir as chamadas “biopics” (filmes ou séries biográficas) é complicado. Para piorar, geralmente vão além de um artigo jornalístico embasado em entrevistas. Liberdades artísticas permitem, por exemplo, a cena em que Tommy Lee conversa com o próprio pênis (um dos momentos mais bizarros de Pam e Tommy), entre outras. Até agora a série não refez as cenas explícitas da lua de mel, mas a imaginação vai longe. É o paradoxo de lidar com a dor alheia e, ao mesmo tempo, a oportunidade de usar um exemplo verdadeiro para refletir sobre o mundo tóxico masculino. Essa narrativa é a parte interessante da série, mas queremos saber da intimidade do casal.
Vamos combinar que Tommy Lee e Pamela Anderson eram apaixonados e inconsequentes quando filmaram sua lua-de-mel. O furto da fita os colocou sob os holofotes insensíveis do consumo, dos fãs de pornografia, dos executivos querendo lucro e apresentadores e jornalistas querendo audiência e atenção. E ainda levaram a culpa! Até hoje ouviremos pessoas argumentando que “se não queriam que vazasse, que não tivessem filmado”. Há quem ataque Paris Hilton e Kim Kardashian por terem “usufruído de fama semelhante” para construir impérios de mídia. O fato é que hoje poucos lembram da fita de Kim ou sequer mencionam Paris, mas ninguém esqueceu de Pamela Anderson.
O roteiro da série ressalta a solidão da atriz no meio de tudo. Ela sempre pressionou pelas atitudes certas, como buscar a fita com urgência e prioridade (algo que a polícia não fez), recuperar a original e a destruir antes de ser copiada, a de tentar não provocar briga com as revistas que conseguiram as imagens, mas negociar para manter a privacidade. Nunca é ouvida por nenhum dos homens, nem mesmo o marido que a defende. Aliás, o tratamento de Tommy Lee é onde está uma das armadilhas da série.
O Tommy Lee de Sebastian Stan tem sido humanizado e até cômico. O músico tem empatia e se importa genuinamente com Pam, mas faz parte do machismo estrutural tóxico que o impede de tomar as decisões certas. Mas entre o Tommy que estamos vendo e o verdadeiro há uma grande distância. Mais tarde o casal se separa, não antes de Pam ser agredida fisicamente (enquanto estava com o filho no colo). A série sugere que essa mudança de comportamento acontece também por causa da fita. Será?
Em defesa de Pam e Tommy, que é produzida por Craig Gillespie, de Eu, Tonya, a reconstituição de época, com trilhas sonoras e momentos tão anos 1990, está perfeita. Lily James, como Pamela Anderson, está irreconhecível. O roteiro é efetivo em mostrar o quanto a tecnologia impactou a cultura nos últimos 30 anos e estão super apurados. Rever o programa de fofocas, Hard Copy, que foi o embrião do TMZ dá arrepios. Para quem não é da época, o fim do programa se deve à iniciativa de George Clooney, que boicotou os repórteres e não deu entrevistas enquanto o programa estivesse no ar. Outras estrelas seguiram o exemplo e o programa acabou (mas não impediu o surgimento do TMZ, um fenômeno típico de Internet).
Mas voltando à Pam e Tommy. Me sinto culpada de toda semana assistir e ansiar pela série, como se estivesse vendo a tal fita tortuosamente. Porém, ela ressalta o paradoxo da história e é importante para relembrar e refletir sobre o machismo. Pamela Anderson não poderia ter sido (e ainda ser) condenada por sua intimidade, por isso a mensagem de Pam e Tommy tem relevância. O nosso dilema é entender e rever o drama de Pam, mas ter empatia à dor que ainda causa à sua vítima. Ela não escolheu essa luta, mas a batalha não acabou.