O cantor australiano Michael Hutchence foi considerado um dos homens mais bonitos e sexy do rock ‘n roll. Sua voz grave, seus movimentos lânguidos, sua carreira de sucesso, o uso abusivo de drogas e álcool, romance com modelos e morte prematura, quase como clichê, reuniram todos os elementos de um mito do rock. Ainda assim, há um mistério ao redor de sua morte surpreendente, em 1997. O documentário Mystify: Michael Hutchence (em referência a um dos grande sucessos da banda), na Netflix, tenta esclarecer qualquer dúvida ainda sobre as verdadeiras circunstâncias de sua morte. E surpreende.
No final dos anos 1980s, o INXs chegou a ter igual importância que o U2, e o mesmo status de superstars. Hutchence estava em todas as capas de revista e era um dos homens mais famosos do planeta. Abertamente hedonista, mas sem arrogância de estrela, Hutchence se envolveu em um polêmico triângulo amoroso que será sempre uma parte importante em sua biografia. Seu suicídio, que antecedeu apenas horas antes de começar a turnê de volta do INXs, e a especulação semeada pela namorada, Paula Yates, de que sua morte teria sido consequência de um jogo sexual que deu errado, irrita os fãs, parentes e amigos, e o documentário pretende encerrar a questão.
Imagens e depoimentos inéditos
Pela magnitude de sua importância na música nos últimos anos, o músico já foi objeto de filmes e outos documentários, mas Mystify é realizado por um amigo pessoal do INXs, Richard Lowenstein. Foi Lowenstein que dirigiu os melhores vídeos do grupo, incluindo os clássicos New Sensation, Need You Tonight, Never Tears Apart, Suicide Blonde, Listen Like Thieves e By My Side, para citar apenas alguns sucessos. Ele obteve os vídeos pessoais feitos pelo próprio Hutchence (e amigos), e assim temos acesso à família do cantor, às namoradas e à sua intimidade. Ajuda muito para aumentar o fascínio e ter uma ideia de quem ele realmente parecia ser quando estava fora dos palcos.
INXs foi uma banda surgida na Austrália ainda no final dos anos 1970. O nome em inglês quer dizer Em Excesso e condiz muito com a alma de Hutchence. Críticos o consideravam magnético, com um toque de Mick Jagger e Jim Morrison. A música do grupo mesclava rock e funk e embarcou na onda do new wave/pop dos anos 1980. Quando lançaram o álbum Kick, em 1987, conquistaram o mundo. Foram eleitos como melhor grupo do ano em 1987, 1989 e 1992. Porém, com o sucesso do grunge e bandas como Oasis e Blur ganhando as paradas, o INXs foi perdendo espaço. O último álbum com Hutchence foi lançado no mesmo ano de sua morte – 1997 – e foi recebido com frieza.
O acidente, o escândalo e o suicídio
Embora tenha sido abertamente um homem de vários relacionamentos, Hutchence teve 4 relacionamentos de relevância. Três das ex-namoradas falaram no documentário e, nos testemunhos delas, há uma mensagem de que o cantor não era tão irresponsável como poderia parecer. Ele não era atormentado, era um homem apegado aos amigos e parentes, porém um artista curioso dos sentidos. A fama de bad boy veio dessa intensidade que não era destrutiva até pouco antes de sua morte. Com imagens dos vídeos caseiros, brilhantemente editados, é como se fosse possível conversar com o cantor. Suas letras, como a romântica Never Tear Us Apart, ganham emoção quando não apenas se descobre a história atrás dela, mas literalmente testemunha o que aconteceu.
O destino de Hutchence estava ligado a dois nomes importantes da Grã-Bretanha. Tragicamente, como se pôde ver depois. Em 1985 ele conheceu Bob Geldof, na época à frente do Live Aid, e a primeira mulher do músico, a jornalista Paula Yates. Paula era uma jornalista/celebridade extremamente popular na Inglaterra. Os pais trabalhavam na televisão e ela surgiu como uma repórter de música, chegando a co-apresentar com Jools Holland um programa de sucesso, o The Tube. Foi gravando esse programa que ela teve o primeiro contato com Hutchence. Anos depois, ela tinha um programa sozinha na TV, onde recebia os entrevistados na cama. Isso, na cama. Há vários vídeos dela no YouTube, com Bon Jovi, Simon LeBon, Kylie Minogue (ex de Hutchence) e George Michael. Com todos ela mantinha sua marca registrada de flerte e perguntas de duplo sentido sobre sexo. No entanto, quando entrevista Michael Hutchence, em 1995, os dois entrelaçam as pernas de forma absolutamente chocante e deixam claro a química entre eles. Ele estava namorando a modelo Helena Christensen e Paula estava casada (e com 3 filhas) com Geldof. O romance nunca foi perdoado pelos tabloides ingleses e o divórcio litigioso de Paula e Geldof ganharia fatos novelescos. Hutchence estava no meio de toda confusão.
Atenção! Aqui vem o spoiler do documentário.
Em agosto de 1992, quando estava com Helena na Dinamarca, o cantor foi agredido por um taxista. Ele levou um soco e quando caiu, desacordado, bateu com a cabeça no meio-fio. Sangrando, ele foi levado para o hospital. Nunca mais foi a mesma pessoa. Em um raro testemunho (ela nunca falou sobre o fato antes), Helena conta que, ao acordar, Hutchence revelou um lado agressivo desconhecido por todos. Com muita insistência, depois de meses, ele aceitou investigar o que estava acontecendo. Por causa da queda e da fratura no crânio, Hutchence teve uma lesão cerebral que não apenas mudou seu comportamento, mas também rompeu a ligação neurológica de olfato e paladar. Uma sequela irreversível que desencadeou a depressão e revolta no cantor. O consumo de álcool aumentou, assim como o uso das drogas. Foi neste cenário autodestrutivo que ele iniciou o caso com Paula Yates.
Em 1996, Paula engravidou de Hutchence e juntos tiveram uma menina, Heavenly Hiraani Tiger Lily Hutchence, mais conhecida como Tiger Lily. No entanto, a briga judicial de Paula com Geldof pela guarda das filhas dos dois trouxe conflito para o romance. Hutchence queria voltar para Austrália, mas não queria ficar longe da filha. Geldof não aliviava na negociação de ter a guarda compartilhada das filhas dele, impedindo assim que Paula pudesse sair da Inglaterra. Quando uma babá denunciou que Paula tinha heroína em casa, qualquer possibilidade de apoio da opinião pública para o casal acabou. As brigas cresceram em intensidade, em volume, em frequência.
No meio dessa turbulência, Hutchence embarcou para Sydney, para começar a turnê com o INXs. Paula iria em seguida, levando as filhas. No dia 22 de novembro, ela ligou para Hutchence avisando que a audiência havia sido adiada e que não poderia viajar na data combinada. Desesperado, o vocalista ligou para Geldof e os dois brigaram. Foram as horas fatais e finais de Hutchence. Quando desligou com Geldof, ele ligou para uma ex-namorada, chorando. Eles desligaram às 10h e 20 minutos depois ela bateu na porta do quarto dele no hotel. Não houve resposta, mas ela considerou que ele estivesse dormindo. Uma camareira descobriu o corpo de Hutchence duas horas depois. Ele tinha se enforcado com um cinto.
Não houve bilhete de despedida. Paula, que disse que se recusava a aceitar a conclusão da polícia de suicídio, declarou que ele teria morrido em um acidente quando tentava um ato sexual com asfixia. O documentário quer encerrar qualquer possibilidade de perpetuar essa versão. Para eles, a lesão cerebral teve o papel fatal na decisão e morte de Hutchence. Paula morreu de overdose 3 anos depois dele.
O que ficou de fora do documentário
A morte de Paula Yates, por overdose de heroína, quando estava sozinha com a filha de 4 anos em casa, não é a parte final da trágica história de Michael Hutchence. A família do cantor entrou na justiça para brigar com Bob Geldof pela guarda de Tiger Lilly. Isso mesmo, apesar de ter tia, avó e tio, Tiger ficou com as meias-irmãs e o pai delas. Geldof ganhou a custódia da menina e a adotou. Hoje ela tem o sobrenome dele e se chama Heavenly Hiraani Tiger Lily Hutchence Geldof.
Em 2014, a família Geldof passou por outra tragédia. A irmã do meio de Tiger Lilly, Peaches, morreu nas mesmas circunstâncias que a mãe, de overdose enquanto estava em casa sozinha com o filho de 3 anos. Tiger Lilly não tem contato com a família do pai. Para completar, o patrimônio dele, inicialmente estimado em 16 milhões de dólares, não cobria as dívidas que o cantor tinha. Resultado, ela não herdou mais do que poucos mil dólares e vive, aos 23 anos, uma vida simples e longe dos holofotes. A ironia de que a única filha de Hutchence acabou sendo criada pela pessoa com quem ele tinha um relacionamento conflituoso não passa desapercebida, muito menos pelo próprio Geldof. Em entrevista há poucos anos, ele disse que tem Tiger Lilly como sua filha, mas que preserva a memória dos pais para ela. E dividiu uma história. “Estávamos em uma loja e tocaram uma música minha. Ela olhou para mim e disse, ‘pai, é sua, não é?’. Respondi ‘sim’, feliz”, ele contou ao 60 Minutes há 3 anos. “Então emendaram com uma música do Michael [Hutchence]. Ela olhou para mim e perguntou: ‘essa é do meu pai verdadeiro, não é?’. “É sim”, respondi. Ela esperou uns segundos e falou ‘A música do meu pai é melhor'”, Geldof riu. “E é verdade mesmo”, admitiu.
Mystify busca e consegue melhorar a imagem de Hutchence para os fãs que tinham alguma reticência quanto a ele e sobre os anos finais de sua vida. Ele nunca buscou a celebridade e partiu sem conviver mais do que um ano com a filha. Mas deixa um acervo de sucessos e uma história que nem a ficção conseguiria criar.
Quer lembrar alguns sucessos do INXs e Michael Hutchence? Aqui vai uma playlist especial para você:.