Já imaginou se as “Bond Girls” invertessem o jogo de James Bond?
“Traição” reúne Olga Kurylenko e Oona Chaplin 14 anos depois de “Quantum of Solace” e planta uma semente para uma boa história feminina de ação e drama
O ator Charlie Cox interpreta um espião bem diferente em Traição. Adam Lawrence é o agente da MI6 que é bem casado, pai de família dedicado e não tem nada das angústias solitárias tão frequentes dos heróis que sacrificam suas vidas pelo País. Na inevitável comparação com o maior ícone do gênero, James Bond, mesmo que na despedida de Daniel Craig no papel em Sem Tempo Para Morrer, 007 fazendo o café da manhã para sua filha e a colocando na cama, foram momentos furtivos na trajetória do herói. Afinal, os espiões que conhecemos são com maior frequência pais ausentes com um passado traumático que os fazem “serem bons no que fazem”.
Claro que é um resumo simplista, mas você entende o que quero dizer. Uma das surpresas que a série Traição traz é esse pequeno detalhe, onde Adam tem uma vida como se o trabalho da MI6 fosse algo trivial, um emprego das 10h às 19h, sem grandes riscos pessoais. Obviamente que não é verdade.
Para diferenciá-lo ainda mais, de cara vemos que a rápida ascensão de Adam na hierarquia profissional não é bem aceita na equipe – que o acha fraco – e nós, a princípio, não podemos discordar. A domesticidade da vida dele, a sua relação empática com todos com quem trabalha são algo fora do lugar para quem está acompanhando ex-agentes da KGB ou outras artimanhas terroristas internacionais. Mas tudo muda quando Kara Yersov (Olga Kurylenko) aparece e confirma essa aparente inaptidão de Adam para função, jogando na cara dele que chegou a hora de pagar por ter subido na MI6 às suas custas. Se não tinha ficado óbvio, logo entendemos que Adam Lawrence não é James Bond, que jamais foi cobrado por nenhuma das “Bond Girls” que usou e descartou ao longo da carreira. O fato de ter justamente a atriz Olga Kurylenko nesse papel é hilário porque ela foi uma dessas “Bond Girls”. Para os aficionados de 007 é fácil lembrar que Olga foi a estrela feminina de Quantum of Solace, o filme mais torturante do período Daniel Craig como James Bond. Sua Camille Montes queria vingança e era tão obstinada por respostas como Kara Yersov é em Traição.
A volta de Kara à vida de Adam é mais complexa do que uma coleta de dívidas. Como ex-amante dele, ela também complica a dinâmica do novo casamento do agente britânico, aparentemente feliz com a quiroprata Maddy de Costa (Oona Chaplin). Para piorar, o inesperado sequestro da filha dele traz mais perguntas do que respostas. Afinal, como sempre em histórias de espiões, a trama gira em torno do velho drama de agentes duplos infiltrados e tudo nos faz entender que Adam é o traidor. Claro que ele alega inocência e, para resolver essa questão, tem que impedir uma chantagem política, salvar sua família e ainda se livrar de Kara, não necessariamente nessa ordem. Nas próprias palavras de James Bond em A Serviço Secreto de Sua Majestade, “isso nunca aconteceu com o outro cara”.
Logo descobrimos que Maddy não é quem aparenta ser, porque de passiva não tem nada. Ela serviu nas forças armadas e sabe muito sobre como funcionam os assuntos internacionais e como sobreviver a eles. Isso faz do tradicional triângulo amoroso algo mais original em Traição. E gente, a traição do título é mesmo dúbia. Adam seria um “traidor” de seu país e traidor em seu casamento, mas a “traída” na relação não é Maddy, mas sim sua primeira mulher, que faleceu antes de começar a série, portanto não sabemos se sabia ou como lidou com a questão. O que vemos é que Maddy reage como muitas de nós: não gosta nem um pouco. Afinal, ele conta segredos de Estado e compartilha “tudo”, mas jamais tinha falado dessa pulada de cerca. Uma das razões do segredo, ele admite, é que Adam usou os sucessos da espiã russa como se fossem seus, abandonando a ex no ostracismo. Se todos souberem da verdade, a carreira dele está acabada. Voltando às comparações inevitáveis com James Bond, quando poderíamos ter 007 admitindo algo semelhante?
A partir dessa revelação, o interessante mesmo é a dinâmica entre Kara e Maddy, porque quem não teve o fantasma de uma ex trazendo insegurança para seu relacionamento? Quem não foi ou é um fantasma para a atual do seu ex? Como seria se a vida te forçasse a se unir justamente a esse desafeto que te traz insegurança?
Em Traição, a forma com que Maddy e Kara superam a armadilha do ciúme e inveja é um dos pontos altos na narrativa. Elas se desconfiam mutualmente até que não há mais razão para se afastarem, unidas pela dor e o amor. Quando entendem que não são inimigas e sim aliadas, o peso do drama ganha outra perspectiva. E aqui um último parênteses para ressaltar que é igualmente curioso que a atriz Oona Chaplin (neta de Charles Chaplin e que conhecemos mais como a Talysa de Game of Thrones) tenha feito uma ponta em Quantum of Solace. No filme, ela fez uma jovem abusada salva justamente por Camille (Olga Kurylenko). Não dá para perder a ironia de uni-las mais uma vez com essa dinâmica.
Claro que há certas habilidades ou “coincidências” que simplificam alguns pontos incongruentes na intricada trama de Traição, mas é muito interessante a perspectiva da relação entre as personagens femininas. A união delas inverte o jogo e é uma alternativa original, especialmente porque vem de um autor homem. Com Traição, Matt Charman, que foi indicado ao Oscar pelo excelente thriller A Ponte dos Espiões, criou uma história onde o homem funciona como a “dama em perigo” e onde as mulheres unidas que se transformam no herói que salva o dia. Sem perder empatia ou viverem angustiadas, como muitas heroínas de filmes de ação. Não é a toda que muitos ainda torcem por um spin-off ou uma sequel. Fica em aberto. Eu veria num piscar de olhos!