Os mais cínicos podem estranhar “mais uma história sobre o Holocausto”, mas nunca é o suficiente para nos assustarmos e relembrarmos o que aconteceu há 85 anos, que, honestamente, foi ontem. E, no caso da série Nós Tivemos Sorte (We Were The Lucky Ones), há uma conexão direta com o Brasil: é a história da família Kurc, que sobreviveu à Segunda Guerra Mundial e se reencontrou aqui, criando raízes em São Paulo e no Rio de Janeiro, graças à ajuda do Embaixador brasileiro Luiz Martins de Souza Dantas, entre outros.
Estrelada por Joey King e Logan Lerman, Nós Tivemos Sorte (We Were The Lucky Ones) chegou à Disney+ com seis meses de atraso se comparado aos Estados Unidos, mas em tempo para embarcarmos em uma trajetória de amor, dor e esperança.
Marcas do holocausto no Brasil
A série é a adaptação do livro biográfico de Georgia Hunter, a escritora que jamais imaginaria que a emoção de sua família seria um best-seller ou uma série. Com seus primos brasileiros e uma ligação direta com o nosso país, ela topou conversar com CLAUDIA e o papo exclusivo (abaixo) reflete muito da generosidade e amor que vemos na tela e nas páginas do livro.
A história é sobre a família Kurc, que vivia na Polônia e seu viu forçada a se separar quando a brutalidade da guerra se tornou um risco direto de morte para eles. Obrigados a trabalhar em condições deploráveis e despejados das suas casas por serem judeus, eles passaram anos tentando sobreviver e mais do que tudo, se reencontrar. É uma história incrível, que nasceu de algo inesperado, como Georgia nos revela no papo abaixo.
CLAUDIA: Somos Os Que Tiveram Sorte me comoveu bastante, principalmente porque alguns dos meus melhores amigos são crianças cujos bisavós vieram para o Brasil fugindo da Guerra, inclusive da Polônia, como a sua família. E é emocionante olhar para uma história tão triste, mesmo sabendo pelo título que terá um final feliz. A jornada não é fácil. Quando foi o momento em que você começou sua pesquisa?
GEORGIA: Tenho que voltar bem longe no tempo para dizer a centelha por trás de tudo isso, porque a história é uma história real, e é toda baseada na minha família. Meu avô é Addy Kurc, que é interpretado por Logan Lerman na série. Você o conhece no capítulo um do livro. E eu cresci muito próxima do meu avô. Sou de uma cidadezinha em Massachusetts chamada Plainville, e ele morava com minha avó Caroline, a uma milha da rua. Nós éramos muito, muito próximos. Mas quando criança, ele nunca falou sobre crescer na Polônia ou sobre o fato de ser um sobrevivente do Holocausto. Simplesmente não fazia parte do nosso diálogo.
Apesar do fato de ele ser muito carismático, visionário e positivo, não acho que fosse um segredo profundo e obscuro, algo sobre o qual não falávamos. E ele faleceu quando eu tinha 14 anos. Quando eu tinha 15 anos, um professor de inglês na minha escola nos deu um projeto e disse: saiam e entrevistem um parente para aprender um pouco sobre suas raízes e depois se informem. E com a memória do meu avô ainda tão fresca, decidi sentar com minha avó Caroline e fazer algumas perguntas sobre sua criação, porque percebi que sabia muito pouco sobre isso.
E foi então que sua história veio à tona: descobri que sou um quarto judia polonesa, que venho de uma grande família de sobreviventes do Holocausto e aprendi bastante sobre a história do meu avô, que por ser o único irmão que vivia na França [quando a guerra estourou] conseguiu chegar ao Brasil e acabou conhecendo minha avó no Rio. No entanto, minha avó não conseguiu compartilhar muito sobre os outros irmãos dele (meu avô era um de cinco filhos) e, quando perguntei sobre a sobrevivência deles ao holocausto, porque eles permaneceram, a maioria deles, na Europa Oriental e na Polônia, ela não conseguiu responder por que eles não falavam muito sobre aquela época.
CLAUDIA: Mas isso foi ainda na escola, como veio a fazer parte da sua vida adulta e virar um livro?
GEORGIA: Isso foi em 1995. Ao avançar cinco ou seis anos para minha formatura na faculdade, em 2000, minha mãe organizou uma reunião de família naquele ano em nossa casa, em Massachusetts, e convidou todos os seus primos de primeiro grau do lado do pai. Há dez primos de primeiro grau de sobreviventes de segunda geração. Eles todos vieram do Brasil, da França, de Israel, de todos os estados.
Tivemos uma semana incrível juntos. Uma noite naquela reunião, eu me vi ao redor da mesa de jantar com minha mãe e seus primos e percebi que eles estavam contando histórias sobre a guerra, e elas eram diferentes de tudo que eu já tinha ouvido antes. Foi quando meus olhos realmente se abriram para a narrativa da família das cortes maiores, e percebi que essa família muito próxima se espalhou literalmente pelos continentes no início da guerra para sobreviver e tinham esse tipo de missão dupla: permanecer vivos todos os dias e também se reunir para se encontrarem novamente, porque eles frequentemente perdiam o contato um com o outro.
Peguei pequenos pedaços dessa história, como a do primo que mora em São Paulo, que foi enviado para seus pais e no gulag, na Sibéria, no auge do inverno. Como os primos cuja mãe escalou os Alpes a pé até a Itália, as fugas do gueto, as identidades falsas, a circuncisão disfarçada. As histórias continuaram surgindo, e acho que foi quando percebi que alguém realmente tinha que escrever tudo isso, porque elas eram simplesmente marcantes para mim e não conseguia imaginar que essa família tivesse passado pelo que essa família passou hoje. Em algum lugar dentro de mim surgiu a ideia de que eu talvez devesse encarar esse projeto de escrever sobre isso. Mas levaria oito anos até que eu tivesse coragem de começar.
Em 2008, parti para desenterrar e registrar a história da família. Eu sabia que seria necessário voar ao redor do mundo, porque a família é muito global, mas que era muito importante para mim falar com o máximo de pessoas possível pessoalmente. Viajei muito, fiz muitas entrevistas e pesquisas externas, e aos poucos a história foi se formando. Ainda assim, demorou nove anos para o livro ser lançado, em 2017.
CLAUDIA: Houve alguma história em particular que te marcou mais?
GEORGIA: É uma pergunta tão difícil. Acho que o que me impressionou foi o quão diferentes eles eram, o quão diferentes eram seus caminhos para a sobrevivência. E, claro, fui atraída pela história do meu avô, e a dele foi, de certa forma, a mais fácil de se relacionar porque eu o conhecia melhor e também porque ele não passou pelo Holocausto do mesmo jeito que os parentes que ficaram na Polônia. Seu tipo de perda foi um tipo muito diferente. Ele não sabia se veria sua família novamente. Mas, me tornei mãe na metade da escrita do livro e, de repente, pude me relacionar, de uma forma com a história de Mila que não conseguia antes.
Mila era a irmã mais velha do meu avô, e ela tinha uma bebê, Felicia, que tinha um ano de idade no início da guerra. De repente, as decisões que Mila foi forçada a tomar, imaginando se sua filha estaria mais segura sob seus próprios cuidados ou sob os cuidados da casa e dos braços de outra pessoa, tendo que decidir se arriscaria ou não deixá-la sozinha em seu apartamento, trazendo-a para trabalhar ilegalmente. Quero dizer, todas essas decisões, todos os dias, era quase como se eu pudesse me relacionar, mas era quase impossível me relacionar ao mesmo tempo, se isso faz sentido.
CLAUDIA: Sim, faz.
GEORGIA: E, de todos os irmãos, ela era comparada à irmã Halina [a personagem de Joey King], mais suave e quieta e ao mesmo tempo tão forte e tão corajosa. Tem uma cena em que ela achava que estavam sendo salvas, que eles estavam em uma lista de pessoas que iriam poder se mudar para a Palestina, mas seriam colocadas em um trem para um campo de extermínio… Ouvir aquela descrição de Felicia, de como ela e sua mãe sobreviveram àquele momento em particular é provavelmente a história que mais me assombra e que mais me inspira. A coragem que foi necessária naquele momento para Mila tomar algumas decisões muito impossíveis e em frações de segundo.
CLAUDIA: Sim, é uma cena na série que é muito angustiante e tive que me lembrar: termina bem.
GEORGIA: Sim, termina bem para ela, mas é como se não terminasse bem para a maioria das pessoas, então eu estava constantemente pensando sobre isso enquanto escrevia. Tinha que ser muito consciente do fato de que a história da minha família tem um final feliz, entre aspas, e que são uma anomalia estatística completa quando se trata do número de pessoas que conseguiram sobreviver e se reunir. O que estava acontecendo ao redor deles era um contraste, então tive que tentar encontrar maneiras de honrar a história do Holocausto enquanto contava a história particular deles. Mas assim como você, muitos leitores me disseram que tinham que, tipo, folhear até o final naquela cena e ter certeza.
CLAUDIA: E também, uma das coisas que você fala muito bem é a questão da fé e positividade, e sobre sorte. Ao fim do projeto, você saiu disso com mais fé ou apostando na sorte?
GEORGIA: É por isso o título, que menciono na nota do autor do livro, é sobre a noite daquela reunião familiar, quando estávamos todos sentados à mesa, em 2000, e eu ouvi as histórias pela primeira vez. Felicia, que era a mais velha das primas de sua geração, olhou ao redor da mesa e disse:“é um milagre estarmos todos aqui hoje. Nós fomos os sortudos”. Isso realmente ficou comigo e parecia um título apropriado, de certa forma, para homenageá-la.
Mas eu fiz essa pergunta em todas as minhas entrevistas: foi só sorte? O que você acha que foi? Claro, a sorte desempenhou um papel importante na sobrevivência deles e todas as decisões que eles estavam tomando poderiam ter terminado de forma diferente. Cada cenário poderia ter terminado de forma diferente, mas o fato é que eles estavam planejando com antecedência, estavam constantemente fazendo escolhas e tentando ficar um passo à frente. Foram corajosos e engenhosos.
Acho que durante todo o processo, isso certamente me aproximou das minhas raízes. Só de sentar, vir para o Rio e passar uma semana com meus primos, primos da minha mãe no Rio… eu nunca teria feito isso se não fosse por esse projeto. Só de sentar na casa deles, fazer perguntas, conhecê-los e, então, por meio deles, conhecer seus pais, que eu nunca conheci. Nunca tive a chance de conhecer muitos dos meus parentes no livro e na série, mas me sinto mais perto das minhas raízes, mais fundamentada de certa forma, do que sentia antes de começar este projeto.
E certamente sinto mais fé na humanidade, apesar do fato de ser uma história do Holocausto, o que provavelmente faria algumas pessoas perderem a fé na humanidade. Isso porque entre as coisas que mantiveram minha família viva, além de sorte, desenvoltura, coragem e perseverança, foi o amor. O amor que os carregou, carregou-os durante o dia, e o amor um pelo outro, a esperança de que eles se encontrariam novamente. Esse amor se espalhou pela família, e todos nós sentimos isso.
Hoje somos uma família muito eclética e diversa, mas todos nos reunimos sempre que possível para nos vermos. Toda família veio para a exibição da série aqui em Washington, DC. [Foram] 30 e poucos membros da família todos juntos, e isso é muito único.
Também fiquei muito comovida com as pessoas que ajudaram minha família ao longo do caminho. O embaixador brasileiro Souza Dantas, que nunca falou sobre sua bravura e ajuda enquanto estava emitindo vistos ilegalmente para judeus que estavam presos na Europa e os ajudando a sair. Meu avô foi um deles, e Souza Dantas provavelmente salvou sua vida. A freira que acolheu a pequena Felicia, o casal de camponeses que acolheu meus bisavós e os escondeu em casa. Todas essas pessoas que levantaram a mão onde poderiam ter sido complacentes ou poderiam ter dito não ou até mesmo os entregado por uma recompensa. Eles correram um risco tão grande e tiro inspiração e fé com esses atos de altruísmo e gentileza.
CLAUDIA: A maioria dos brasileiros não conhece a história do embaixador Luis Martins de Souza Dantas ou de Aracy de Carvalho, o Anjo de Hamburgo (embora a vida dela tenha virado uma série no Brasil). E é muito interessante vê-lo nessa história, ver o Brasil com um impacto tão forte na trajetória de sua família. Mais ainda, porque eles decidiram ficar aqui. Mesmo com alguns, mais tarde, saindo, as personagens da série ficaram no Rio de Janeiro e em São Paulo. Você sabe por que eles abraçaram o Brasil?
GEORGIA: Eles não tinham nenhum interesse em voltar para a Polônia e havia muito antissemitismo depois da guerra em todos os lugares. As pessoas ainda estavam em perigo, então eles estavam prontos para encontrar estabilidade em um lugar onde pudessem criar suas famílias, recomeçar e se sentir seguros. Não sei se meus primos, José e Michelle, no Rio e em São Paulo, perguntaram aos seus pais. Imagino que eles desembarcaram neste país lindo, onde as pessoas são amigáveis, onde há uma sensação de estar à vontade e se sentiram acolhidos de uma forma que não se sentiam há muito tempo.
Outro fator preponderante é que todos eles viviam juntos, sob o mesmo teto, filhos e netos. E isso é uma coisa realmente linda. Depois ter passado tanto tempo separados, fugindo e inseguros, estar sob o mesmo teto, se sentir seguro e fazer parte da vida de seus filhos e netos. Hoje a quarta geração depois deles estão correndo pelo Rio e São Paulo agora. Isso é lindo.
CLAUDIA: Mas Addy acabou indo para os Estados Unidos e vemos na série ele fazendo a escolha.
GEORGIA: Sim, e quando meu avô veio para os Estados Unidos, acabou em um lugar onde não há poloneses nem judeus, por isso não criou sua família na fé judaica. Americanizou seu nome e assimilou completamente a cultura americana. Eu entendo o porquê. Já seus irmãos que vieram para estados onde há uma grande população judaica, mantiveram sua fé e mantiveram a grafia de seu sobrenome.
CLAUDIA: Como foi ver uma estrela como Joey King interpretar Halina? E claro, Logan Lerman como seu avô, Addy?
GEORGIA: Não consigo dizer o suficiente sobre nosso elenco e quão perfeitamente eles interpretaram cada um de seus personagens. É estranho chamá-los de personagens porque são parentes. [risos] Acho que levamo mais tempo do que a maioria dos shows para encontrar as pessoas certas, mas acertamos. Joey é simplesmente extraordinária. Toda vez que eu a via gravando parecia uma aula de mestrado em atuação.
Ela estava de bate-papo e ao pisar no set, tudo mudava. E maneira de como ela foi capaz de entrar no coração de Halina, em seus sapatos e em sua mente, carregar aquela grande personalidade naquele pequeno corpo… [se emociona] Halina era a mais nova de cinco e estava apenas descobrindo a vida quando tudo virou de cabeça para baixo. E, no final, ela acaba sendo uma espécie de orquestradora da segurança da família, porque conseguiu se passar mais facilmente como não judia e usou sua identidade falsa para tirar o marido da prisão. Foi um pedido muito grande para Joey carregar esse arco para sua personagem e ela acertou em cheio. Fez um trabalho fenomenal.
Há muitas coisas em comum entre Halina e Joey King e vice-versa. São muito parecidas.
Sabe, muitos membros da família vieram para o set, e um deles e a segunda filha de Halina, Anna, e ela e Joey estavam sempre abraçadas, rindo e se divertindo muito uma com a outra. Também me emocionei quando vi Logan conhecer minha mãe pela primeira vez. Quando vi Nicole [Brydon Bloom], que interpreta minha avó, conhecer minha mãe pela primeira vez e estar no set para o dia do casamento deles, foi extraordinário. Assistir pessoas reais darem vida às suas histórias da maneira mais linda, foi muito emocionante.
CLAUDIA: Em tempos atuais, a importância de trazer uma história com esperança é ainda mais revelante?
GEORGIA: Certamente não fizemos o programa para fazer nenhuma declaração política, até porque escrevi o livro em 2008, então, se você tivesse me perguntado se eu poderia ter previsto que estaríamos vivendo neste mundo hoje com as manchetes, como elas são, eu nunca, jamais saberia ou provavelmente acreditaria em você. Mas é importante.
A televisão, um livro ou documentários são formas de reviver a História e quanto mais pudermos fazer isso, em qualquer meio, mais fácil se torna se relacionar com as pessoas que vivenciaram isso na época. Porque quando você lê em um livro didático ou apenas lê uma manchete, se torna impossível entender como foi.
Quando você coloca isso em uma família de cinco irmãos e vê através dos olhos deles. Se nossos personagens não vissem ou vivenciassem algum tipo de violência, não mostraríamos na câmera. Só mostramos o que nossa família vivenciou.
Essa história não só traz entendimento do que pode acontecer quando paramos de nos ver como seres humanos, mas também nos traz esperança e um senso de humanidade, essa fé na humanidade da qual falamos, e que eu acho que é disso que o mundo mais precisa agora. Tanto o livro quanto a série me trouxeram uma compreensão maior e um senso mais profundo de empatia e acho que se todos nós pudéssemos tirar um pouco disso, ficaria feliz.
CLAUDIA: No seu site, você é muito, muito generosa com dicas sobre como as pessoas incentivam as pessoas a fazerem pesquisas sobre seus antepassados. Que dicas daria para quem quer se aventurar pelo mesmo caminho?
GEORGIA: Direciono as pessoas para o meu site, www.georgiaHunterauthor.com onde tem dicas de pesquisa e há links para diferentes bancos de dados. Porque, por mais que eu estivesse aprendendo com meus parentes só tive o luxo de falar com uma pessoa, Felicia, que ainda estava viva e com memórias em primeira mão. Todos os outros estavam apenas compartilhando histórias de família que tinham sido passadas, por isso vale fazer as pesquisas externas.
Mas comece a fazer perguntas, você nunca sabe qual tia ou tio pode ter ouvido uma história dos seus bisavós, sabe, ou de um avô ou uma tia-avó ou um tio-avô. Crie uma linha do tempo e escreva um ensaio, um blog, para que a informação esteja lá para as gerações futuras. Não se preocupe tanto com o conteúdo, com o formato que terá, conte de uma forma que pareça verdadeira para você, sua família e seu coração, e o resto se encaixará. É um processo assustador, mas também é gratificante. Vale a pena o esforço.
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