Há documentários incríveis, reveladores e emocionantes, que nos abrem a cabeça para fatos novos, uma visão diferente de uma história e que, por vezes, muda completamente a maneira como agimos ou pensamos. Fazer um documentário não é fácil, demanda pesquisa, demanda isenção e ouvir mais de um lado, para deixar o público refletir sobre o tema ou pessoa apresentada. Eu AMO documentários, mas, frequentemente tenho mencionado aqui na coluna de CLAUDIA a minha crescente preocupação com uma onda de conteúdos que são mais vídeos institucionais de propaganda, onde 9 entre 10 dos narradores falam de “suas verdades” sem questionamentos ou visões de opiniões opostas. Em especial, estão conectados com a tendência crescente de consumo de “true crime”, onde essencialmente a emoção é a linha de condução e sentimentos confirmam as verdades de cada um. Isso não é nem jornalismo ou documentário.
Veja bem, não sou contra ouvir a todas as versões ou sentimentos. Mas sempre considerei que a importância maior de um documentário fosse questionar, fosse evitar tomar lados de forma tão aberta. Artigos assinados, releases, vídeos de propaganda são meios de expressar sua opinião, espera-se, com cuidado. E dentro dos vários símbolos do que vejo como assustador nessa nova versão de jornalismo pessoal, estão os documentários feitos sobre e por a gangue de adolescentes americanos que no início dos anos 2000 ficou famosa por invadir as casas de seus ídolos para roubar itens de valor, a gangue do Bling Ring, que Sofia Coppola transformou em filme em 2013, com Bling Ring, a Gangue de Hollywood. Os jovens criminosos não gostaram do filme, sem surpresa, e encontraram no formato documental uma maneira de atraírem os holofotes novamente. É doentio.
Em setembro de 2022, fiz uma análise na minha coluna de CLAUDIA sobre a série documental da Netflix sobre o grupo, com depoimentos em primeira pessoa que me indignou profundamente: Bling Ring – A História por Trás dos Roubos. A única deles que não tinha se manifestado publicamente era a jovem acusada de ser a líder do grupo, Rachel Lee. Pois é, agora até ela tem um documentário para chamar de seu, exibido na HBO e chamado de The Ringleader: The Case of the Bling Ring.
Sem surpresa, Rachel se isenta do papel de liderança, mesmo que, ao contrário dos outros, pelo menos mantenha no discurso uma aparente vontade de assumir a responsabilidade pelo que fez. Ainda assim, ao recontar as ações dela e dos companheiros ressaltando a narrativa da maneira mais interessante para ela, logo vemos que é mais do mesmo. Sim, demora mais que os outros, mas também argumenta que “a verdade dela” precisava ser compartilhada. Desculpem antecipadamente meu sarcasmo, mas a oportunidade de falar vem casualmente quando os crimes da Gangue Bling Ring começavam a ser esquecidos. Isso mesmo, a doença das redes sociais e reality shows não é simbolizada pelas Kim Kardashians da vida, é por esses adolescentes doentes pela fama, uma que damos a eles repetidamente sem pensar duas vezes. Como impulsionam a audiência no Youtube e Instagrams, os documentários são aparentemente a melhor plataforma de comunicação. Não te faz pensar que os reality shows estão invadindo o gênero e se não estão criando uma espécie de rede social tortuosa? Afinal, todo mundo tem um documentário hoje em dia.
A narrativa de Rachel é bem construída porque ela tem um dom de comunicação clara e efetiva que é raro e ela sabe usar. Não é à toa que ela fala mais de uma vez que é manipuladora e que mente com frequência. Se ela sabe e nos avisa, como acreditar no que diz? Não importa, estamos falando ‘dela’, estamos colocando Rachel Lee onde ela sempre quis estar: sob os holofotes.
Nesse documentário, que é a resposta direta ao da Netflix, há outros depoimentos assustadores, como o do amigo que foi o primeiro a ter a casa roubada pelos Bling Ringers e que, em sintonia com Rachel, acusa Nicholas Frank Prugo de ser o principal influenciador em todos crimes, não o coadjuvante. Até a vítima consegue dizer que “não perdoa Nick pelo assalto, mas que poderia encontrá-lo para comer sushi” de vez em quando. Percebem a gravidade? Até ele quer estar perto das celebridades, mesmo que criminosas.
Em outras palavras, é efetivo criar o discurso de arrependimento desde que possam aparecer. Nesses chamados documentários, onde falam sem filtro editorial as “suas verdades”, é um desafio entender como alguém ainda quer dar espaço para isso. Esses jovens são exemplos claros da doença da fama, de como estão longe da cura e como parece ser nocivo dar voz a quem não quer ajuda. Uma fábrica de monstros que se auto alimenta onde o mais comum é alegar que são vitimas da sociedade do consumo desenfreado, como se a sociedade fosse uma entidade da qual não fizessem parte. Um vazio, que nenhum ouro ou sucesso poderá preencher. Uma doença assustadora, aparentemente, incurável que coloca em risco um formato tão poderoso. Que tenhamos atenção quando assistirmos!