Capote sofreu ao destruir reputação de Babe Paley; foi necessário expô-la?
Na série 'Capote Versus Os Cisnes', a socialite foi colateral na obra inacabada do escritor que queria expor a frivolidade da sociedade
Nas palavras de Truman Capote, Babe Paley só tinha um defeito: “Era perfeita. Fora isso? Era perfeita”. Na série Capote Versus Os Cisnes ele repete isso mais de uma vez. E o que alimentou, com esse resumo, foi a lenda da socialite americana múltiplas vezes liderando a lista das mais bem vestidas do mundo, como uma musa de classe e elegância de todos os Cisnes que ele “traiu” com seu livro Preces Atendidas.
Ao expor segredos da infeliz vida conjugal da amiga, já doente com câncer, ele acabou provocando a ira das ricas e famosas da época. Ferir Babe também foi o que o fez sofrer e se arrepender do livro, que nunca acabou.
Mas, será que, mesmo que Babe tenha virado dano colateral, não era mesmo importante revelar a verdade atrás do mito?
A realidade por trás da narrativa de Capote
A proposta de Capote com seu livro era criar uma versão americana do livro À la recherche du temps perdu, de Marcel Proust, fazendo uma reflexão da vida e da sociedade, expondo suas futilidades e fachadas de vidas de glamour e riqueza. Quem leu o livro, ou qualquer outra do escritor americano, argumentaria que ele ‘quase’ alcançou seu objetivo, mas não avaliou as consequências de seu plano.
Isso porque Capote era um dos mais apaixonados pelo estilo de vida que estava criticando. Nesse universo dos ricos e famosos, ele era adorado por sua língua ferina, e Babe Paley era a Rainha, aquela que todas almejavam ser. Obviamente ela teria que ser ‘revelada’. E o processo doeu profundamente para os dois.
Embora o livro tenha virado a metralhadora contra várias mulheres, é o drama de Babe que é a base principal da série dirigida por Gus Van Sant na segunda temporada da franquia. Vivida com brilhantismo por Naomi Watts, a empatia que até hoje Babe Paley desperta em gerações que não conviveram com ela é singular, e reflete muito o que ainda simboliza.
Babe não era atriz, não era cantora, não era esposa de políticos, apenas uma mulher famosa que nasceu e morreu em uma vida de privilégios materiais, onde a superficialidade social a colocava em um pedestal.
E como o livro de Capote sugere, por baixo disso tudo, estava uma mulher frustrada, solitária, doente e infeliz. O problema de deixar isso claro – sem autorização ou conhecimento da própria Babe – foi uma humilhação extra para ela, que só tinha essa imagem como escudo. Ainda é possível ouvir o rachar de seu coração ao ser exposta tão efetivamente por alguém que dominava palavras tão bem como Capote.
Conheça a socialite Babe Paley
E quem foi Babe Paley? Se Truman Capote usou duas vezes a palavra perfeição para defini-la é preciso considerar que ela de fato era o que parecia ser isso. Sua elegância reconhecida publicamente incluía sua conduta em todos os aspectos de sua vida: social ou pessoal.
Escondia atrás de sorrisos e vestidos perfeitos uma infelicidade e decepção que viriam à tona com a publicação do capítulo Le Côte Basque 1965, que saiu na revista Esquire, antecipando o que viria a ser o último livro de Truman Capote.
Truman sabia o que estava escrevendo, mesmo que muitos duvidassem o que ele realmente esperava alcançar com isso. Ele era íntimo de Babe, tinha um acesso privilegiado à ela e seus segredos, mas escolheu traí-la sem nenhum pudor. Será que ele acreditava estar liberando o peso dos ombros da amiga ao revelar como o marido dela era um homem tóxico?
Hoje poderia existir essa corrente de defesa, mas há 50 anos não era o caso. Era uma vergonha para ela que o mundo soubesse como foi usada e abusada por todos os homens ao seu redor (incluindo o autor).
Na época que Truman conheceu Babe, ela já era casada com fundador da rede CBS, William S. Paley (Treat Williams, em seu último papel). Na verdade, Babe era o troféu desse homem ambicioso que muitos temiam por conta de seu poder. Para ajudar a imaginar quem ele era, pense em Logan Roy (Brian Cox), de Succession: grosso, inescrupuloso e perigoso.
Na série da HBO, Logan se casou com a nobre inglesa Lady Caroline Colingwood (Harriet Walter) com o mesmo objetivo de ascensão social que Paley tinha ao se casar com Babe, só que ela era doce e querida, bem diferente de Caroline.
Nascida Barbara Cushing, apelidada de ‘Babe’, em uma família rica de Boston, ela cresceu como uma das mulheres ricas e perfeitas da sociedade americana. Com suas irmãs, ficou conhecida como parte das “Fabulosas Irmãs Cushing” e, como esperado, todas se casaram com homens ricos e poderosos, banqueiros, filhos de presidentes e herdeiros de petróleo.
Desde que o New York Dress Institute criou a lista anual das 10 mulheres mais bem vestidas do mundo, Babe Paley frequentemente esteve entre elas, aliás, nada menos do que 14 vezes. Ela era uma original e trend setter natural. Um dos exemplos mais citados inventados por ela foi amarrar um lenço na alça de sua bolsa. Até hoje é imitada.
Ela também foi uma percussora do estilo high and low porque mesclava jóias verdadeiras com bijouterias e em seu armário tinha peças exclusivas de Balenciaga, Dior, Valentino e Givenchy. Sim, os estilistas se sentiam prestigiados se Babe fosse fotografada com uma de suas criações.
Havia uma razão pela qual Babe raramente sorria e frequentemente era fotografada com a mão próxima do rosto, especialmente em close-ups. Todos imitavam sem saber que a razão pela qual criou a pose foi para disfarçar as cicatrizes de um acidente de carro que também quebrou seus dentes. Plástica e restauração não foram problema para ela pagar, mas o trauma e a vergonha eram confirmados pelo gesto que a lembrava do doloroso evento.
A exposição de Babe Paley
Embora fosse um escândalo para época, o primeiro casamento de Babe acabou em divórcio, em 1946. Sozinha com dois filhos, não foi difícil para William Paley conquistá-la, mas para se casar com a mais famosa das socialites ele precisou se divorciar de Dorothy Hart Hearst, por sua vez ex-mulher de William Randolph Hearst (inspiração para Cidadão Kane e Mank). Sim, percebem o círculo social que Capote queria retratar?
Babe já era milionária por conta de sua separação, mas ter um marido influente ainda era importante para ela. E para Paley, o prestígio dela era irresistível. De origem ‘simples’, ele queria a aceitação definitiva da sociedade nova iorquina, mas até então não entrava para o círculo principal mesmo com todo dinheiro e poder profissional. Com Babe, ele não teria rejeição. E não teve.
Se houve afeto genuíno entre os dois é outra história. Eles tiveram dois filhos juntos e ficaram casados até a morte dela, em 1978. Porém, como ficou claro com o texto de Truman Capote, Paley traía Babe à torto e à direita. Ela aceitava a situação, quieta, fingindo ignorar as escapadas.
A vida de luxo dos Paleys incluía casas na Jamaica, nas Bahamas, fazenda em Long Island, casa em New Hampshire, apartamento em Nova York e uma suíte exclusiva no St. Regis Hotel, na mesma cidade, usada como um “refúgio” que foi o cenário de uma das revelações mais escandalosas do capítulo Le Côte Basque 1975.
A amizade de Babe com o escritor, como demonstrado na série, nasceu de um mal entendido. Quando o produtor David O. Selznick e sua esposa, a atriz Jeniffer Jones, foram convidados para um fim de semana na casa dos Paley, na Jamaica, perguntaram se poderiam levar com eles o amigo “Truman”. Paley, assumindo que falavam do ex-presidente Harry Truman, respondeu ávido que seria “uma honra”.
Quando o diminuto escritor chegou para o vôo, era tarde demais para voltar atrás. Além do mais, Capote já era considerado um dos maiores escritores americanos (ele alimentava o marketing dessa marca circulando em Hollywood com as estrelas) e logo ele e Babe se entenderam, ficando instantaneamente melhores amigos.
Assim como oferecia ao marido aceitação, o mesmo aconteceu com Capote. Ao lado de Babe, ele estava sempre sendo adulado, circulando em um universo mágico de glamour, de festas, almoços caros e muita fofoca.
Essa futilidade foi exposta pela personagem Lady Ina Coolbirth, que conta sem nenhum pudor todas histórias de seus amigos da alta sociedade durante um almoço. Entre as mais escandalosas estava um magnata da mídia que tem um caso e tenta lavar um lençol manchado antes que sua esposa chegue em casa. Até então, apenas Capote sabia do fato e de quem realmente se tratava. Babe nunca perdoou o escritor por ter usado como material para um livro.
Fumante inveterada, nessa época já tinha sido diagnosticada com o câncer no pulmão que viria tirar sua vida. Em seus últimos anos, ela planejou meticulosamente sua despedida. Presenteou os amigos e familiares com peças de sua coleção de joias e roupas, embrulhando cada um com papel colorido. Selecionou pessoalmente o menu e os vinhos a serem servidos no almoço fúnebre após seu enterro.
Mas jamais atendeu a nenhum dos vários chamados ou apelos de Truman Capote para se desculpar, assim como nunca se divorciou de Bill Paley, que foi enterrado ao lado dela quando morreu, décadas depois.
Por conta de seu sentimento de culpa, Truman Capote entrou em um espiral autodestrutivo depois do rompimento. Alternava arrogância (“o que esperavam que eu fizesse?”) à tristeza pelo livro. Ele não se arrependeu de ter falado dos outros “cisnes”, como apelidava as amigas. Lee Radzwill, interpretada por Calista Flockhart, não o cortou como as outras.
Mas, ter ferido Babe Paley o fez sentir profundamente, tanto que seu nome foi uma de suas últimas palavras antes de morrer. Uma conclusão quase poética de ter alcançado o objetivo – expor a sociedade americana – mas com o preço de manchar uma das mais lendárias musas de seu tempo: Babe Paley.
A série da Star Plus é imperdível, como tudo que Ryan Murphy assina, com grandes atuações e grande reconstituição de época. Embora o que tenha partilhado aqui seja mencionado, é apenas superficialmente. Sabendo dos detalhes, o drama ganha maior densidade. Uma série que certamente vai brilhar no Emmy 2024.