A “revisão” de Atração Fatal insiste em isentar a culpa do homem
Alex Forrester fez um único pedido: o de não ser ignorada, mas nem mais de 35 anos depois é respeitada
Há um problema muito sério com alguns ‘clássicos’ dos anos 1980: quando o tema é mulher forte e independente, invariavelmente ou ela era ‘domada’ ou era antagonista. A cultura machista era tão dominante que em filmes como Atração Fatal e Assédio Sexual, a ‘vítima’ era o macho tóxico (coincidentemente, em ambos os filmes vividos por Michael Douglas) e as amantes eram mulheres desequilibradas e invejosas. Ainda assim, Atração Fatal, de 1987, chegou ao Oscar com seis indicações, incluindo filme e atriz, com uma atuação icônica de Glenn Close. Talvez por isso tenha sido o eleito para uma refilmagem, na série da Paramount Plus com Lizzy Kaplan e Joshua Jackson como o casal de amantes e eventuais inimigos.
Original e nova versão estão disponíveis na mesma plataforma. Tudo em Atração Fatal já gritava e ainda ecoa machismo, até o fato de que ainda é resumido como um conto que mostra “o que pode acontecer quando você sai da linha”, o que não esconde seus problemas. Há 37 anos era ainda pior, porque conservadores usaram o argumento de pânico da crise da Aids para enaltecer a “família tradicional”, como prova o comentário do roteirista James Dearden que citou como inspiração as histórias de amigos que traíram as mulheres e que passaram a ser “assediados” pelas amantes. Ele mesmo mencionou que teve “uma namorada que cortou os pulsos, de forma muito teatral e não para se matar”, acrescentando outro exemplo de que “um bom amigo foi perseguido por uma linda, mas louca mulher, e isso estava destruindo seu casamento”. Sem surpresa, como a representante da ‘outra’, Alex Forrest virou então o símbolo de uma mulher com doença mental e desequilíbrio psicológico, a mulher agressiva e independente que é uma ameaça para a família tradicional, que, no fuFtrando, quer o lugar de esposa e mãe, sem medir consequências para alcançar o objetivo. Em 1987 isso já era ofensivo, mas, infelizmente, nem em 2023 o papel foi revisto.
Antes de virar ‘atração fatal’, a história nasceu como Diversion e foi selecionada pela Paramount, dirigida na época por uma mulher – Sherry Lansing – para virar uma grande produção. Alguns diretores recusaram o projeto, que acabou com Adrian Lyne, que estava aclamado por causa de Flashdance – Em Ritmo de Embalo . Glenn Close, que queria dar vida à Alex, passou por um longo processo de convencimento por não ser considerada “bonita” ou “sexy” o suficiente, e tendo que provar que teria os atributos físicos necessários para se tornar uma mulher atraente, pelo menos mais do que Kirstie Alley, Melanie Griffith, Michelle Pfeiffer, Susan Sarandon, Debra Winger, Jessica Lange, Judy Davis e Barbara Hershey, todas convidadas antes dela e que recusaram o “desafio”. Lembrando que Glenn Close já era uma das melhores atrizes americanas e acumulava nada menos do que três indicações ao Oscar como Melhor Atriz (foi indicada pela quarta vez por “Atração Fatal”), mas ainda precisou insistir para ser testada.
No filme de 1987, assim como na série de 2023, Dan Gallagher e Alex Forrest se envolvem no que ele pensava ser uma aventura casual de fim de semana e que acaba em pesadelo. A conexão sexual e intelectual dos dois é mais forte do que Alex antecipava e ela muda de ideia da proposta de ser apenas uma noite, passando a querer algo a mais. Ao perceber que não o convencerá a trocar a esposa por ela, Alex entra em um espiral psicótico e violento, tentando tirar sua própria vida e depois ameaçando a família de Dan, levando tudo para uma conclusão “fatal”. Ela diz no filme que não quer ser “ignorada”, uma frase que na série não tem o mesmo peso, mas foi mantida por ser uma das clássicas do cinema.
A série faz algumas alterações como ter um Dan saindo da prisão, onde foi condenado após o assassinato da amante. No original, ele parece encerrar a história tranquilo com a tese de autodefesa. Em 2023, Alex Forrest – defendida pela atriz Lizzy Kaplan – não é mais uma editora, mas uma advogada, que trabalha nos Serviços para Vítimas de Abuso, com empatia por seus clientes. Mas o grande pecado aparente é que começamos a história com Dan alegando inocência do crime e buscando o verdadeiro culpado. Piora: não mostra nenhuma ‘recuperação’ no retrato de Alex e ela ainda é uma mulher perturbada e obcecada pelo homem casado. Alex é a antagonista, ou seja, segue sendo julgada e ignorada em sua dor.
No filme original o que foi mais polêmico foi a conclusão da história. No primeiro roteiro, Alex tira sua própria vida para incriminar o ex-amante, mas, segundo alegam, o público que viu essa versão rejeitou o final. Precisavam ver a “louca ser punida”, de preferência, “pela esposa fiel”, Beth, vivida por Anne Archer e agora por Amanda Peet. Glenn Close e Anne Archer foram contrárias a refazer a cena final revisada, que transformava Alex em “uma psicopata assassina”, mas foram, sem brincadeira, “ignoradas’. Como Glenn Close resumiu em uma entrevista em 2017, “tiveram sua catarse derramando meu sangue.”
Sem dúvida, Alex Forrest é um papel complexo e a refilmagem não ajudou para atualizá-la. Os episódios finais ainda não foram exibidos, portanto ainda há um espaço para se distanciar do original, mesmo que suspeite que o spoiler esteja em tentar usar agora o final original. Atração Fatal de 2023 tenta nos enganar com a prisão e condenação de Dan, mas, ao sugerir sua ‘inocência’, repete o principal pecado de 1987. Afinal, a essa altura, a figura da “amante louca e enciumada” que transformou a expressão de “coelho fervido” como uma ação extremada mantém o estereótipo do “homem seduzido” que não tem que responder por seus erros. Estamos, mesmo quase 40 anos depois, ignorando Alex novamente. Já deu, né?