Não é novidade que as mulheres sofrem os mais diversos tipos de assédio todo os dias. No ambiente de trabalho não é diferente. No entanto, o medo de fazer uma denúncia e acabar se prejudicando no campo profissional faz com que grande parte dos casos não venham à tona.
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Porém, em um ato de coragem, nos Estados Unidos, mais de 24 mulheres que trabalham em empresas de tecnologia no Vale do Silício, Califórnia, decidiram contar suas histórias ao jornal The New York Times (NYT) e quebrar de vez o silêncio sobre os assédios sexuais que sofreram. Dez delas identificaram os envolvidos revelando, muitas vezes, as mensagens e os e-mails trocados. Algumas ainda citaram nomes conhecidos como Chris Sacca, da Lowercase Capital, e Dave McClure, da 500 Startups, que não negaram as acusações.
Levar uma cantada quando procurava uma vaga na empresa de um profissional de capital para empreendimentos, receber mensagens mais sugestivas de um investidor de startups e ouvir comentários sexistas de outro investidor enquanto arrecadava capital para seu site comunitário foram apenas alguns dos incidentes relatados por empreendedoras e profissionais do ramo.
E o problema não acaba por aí. As mulheres contaram ao NYT que não só os colegas de trabalho, como também as próprias empresas, quando souberam do ocorrido, tentaram minimizar e até mesmo ignoraram esses incidentes. As profissionais ainda foram notificadas de que levar os casos à público poderia resultar em ostracismo.
O estopim para as denúncias foi a notícia do site de notícias do mundo tecnológicos The Information de que Justin Caldbeck, profissional do grupo de capital de risco da Binary Capital, havia assediado empreendedoras enquanto elas lhe apresentavam suas empresas. Para Caldbeck, foram acusações em passagens por três empreendimentos diferentes nos últimos sete anos. A Binary entrou em crise: ele saiu da empresa e investimentos foram retirados dos fundos que ela administrava.
A matéria evidencia a presença massiva de assédio sexual no universo das startups de tecnologia e, juntamente com os novos relatos, colocam em pauta uma mudança efetiva de comportamento no Vale do Silício. Reid Hoffman, fundador do LinkedIn, e outros importantes profissionais do ramo condenaram as ações de Caldbeck e fizeram um pedido de compromisso de decência aos investidores.
O SETOR DE TECNOLOGIA E A DESIGUALDADE DE GÊNEROS
Apesar de possuir algumas empresas, como Google e Facebook, por exemplo, preocupadas com a pouca representatividade das mulheres em diversos níveis – sobretudo nos cargos de liderança –, esse nicho do mercado ainda apresenta muita desigualdade entre os gêneros.
Os eventos que vêm ocorrendo, porém, abriram espaço para que as mulheres falem publicamente sobre a cultura do assédio no Vale do Silício.
Katrina Lake, criadora e presidente-executiva da loja virtual de roupas Stitch Fix e uma das mulheres assediadas por Caldbeck, disse ao NYT que “as empreendedoras são parte fundamental do tecido do Vale do Silício. É importante expor o tipo de comportamento reportado nas últimas semanas, para que a comunidade possa reconhecer esses problemas e resolvê-los”.
Ellen Pao, por exemplo, colocou sua antiga empregadora, a Kleiner Perkins Caufield & Byers, administradora de fundos de capital de risco, na Justiça em 2015 com acusações de discriminação sexual e retaliação profissional por ela ter rejeitado propostas sexuais. Apesar de não ter ganhado o processo, ela conseguiu acender o debate sobre a necessidade de mulheres do ramo denunciarem os assédios.
“O fato de que diversas mulheres, entre as quais Ellen Pao e eu, tenham se pronunciado no passado provavelmente abriu caminho e preparou o setor para admitir que coisas como essas de fato podem acontecer”, comentou a empreendedora Gesche Haas, que em 2014 recebeu propostas sexuais do investidor Pavel Curda, que depois se desculpou.
OS ABUSOS E OS PEDIDOS DE SILÊNCIO
Susan Wu, investidora e empreendedora, contou em um evento de tecnologia com público esmagador de homens em 2009 que Chris Sacca havia tocado seu rosto sem permissão, algo que a fez se sentir muito desconfortável. Além disso, Wu também disse que passou a evitar encontrar Caldbeck depois de uma reunião para tentar arrecadar capital para sua empresa em 2010, na qual que ele tentou investidas sexuais.
Sacca, ao ser procurado pelo NYT, escreveu em um blog que compreendia ter contribuído para o problema e se lamentava por isso. Ao jornal, ele agradeceu “à Susan e às outras mulheres corajosas que estão compartilhando suas histórias. Confio em que o resultado de sua coragem venha a ser a mudança duradoura que é necessária já há muito tempo”.
Já a empreendedora Sarah Kunst tentava uma vaga de emprego na 500 Startups em 2014, porém, durante o processo, recebeu uma mensagem do fundador da empresa, Dave McClure, no Facebook que dizia que ele “estava ficando confuso para mim decidir se deveria te contratar ou te cantar”, entre outas coisas. Kunst recusou os avanços de McClure, mas, depois de falar do episódio com um dos colegas do empreendedor, não teve mais negociações com a 500 Startups.
A empresa afirmou que McClure não estava mais no comando das operações depois de uma investigação. “Ao sermos informados de casos de comportamento inapropriado de Dave com relação a mulheres da comunidade de tecnologia, realizamos mudanças internas”, relatou a 500 Startups. “Ele reconhece ter cometido erros e está fazendo terapia para mudar o seu comportamento anterior, que é inaceitável”.
Lisa Curtis, outra empreendedora, apresentou sua ideia para uma startup de comida em uma competição em 2014 e recebeu a informação de que tinha sido a mais aplaudida pelo público. Pensando que isso seria um pontapé para possíveis investimentos, ao sair do palco, ela teve uma surpresa. “É claro que você ganhou. Você é a maior gata”, comentou Jose De Dios, um investidor.
Mais tarde, Curtis escreveu um texto sobre o ocorrido e postou no Facebook. Ela, então, recebeu uma ligação de outro investidor, na qual ele dizia que, se não retirasse a postagem, “ninguém do Vale do Silício me daria dinheiro”, contou a empreendedora. Ela retirou o post do ar. De Dios, no entanto, disse que não fez uma “declaração difamatória, inequivocamente”.
Em conversas com o NYT, algumas mulheres contaram ser normal serem tocadas sem permissão pelos profissionais e até mesmo receberem pedidos para não falarem sobre as situações pelas quais tiveram de passar. Elas ainda disseram que as mudanças nesses quadros só são mais palpáveis quando acontece algum deles vai à público. Talvez as denuncias recentes sirvam para impulsionar de vez essa transformação.
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