Só se falava em Raíssa Aryadne na Universidade Federal de Alagoas e em São Miguel dos Campos, no interior de Alagoas, no final de 2020. Ela era a única alagoana contratada no primeiro trainee exclusivo para pessoas negras do Magalu. Não era uma vitória qualquer: foram 22 mil participantes para apenas 19 vagas. “Eu dei entrevistas para jornais nacionais. Não virei a Juliette, mas na UFAL e na minha cidade, eu fiquei muito conhecida”, brinca Raíssa.
A popularidade do programa de treinamento veio da polêmica nas redes sociais, em 2020. Houve quem acusasse o Magalu de praticar “racismo reverso” e questionasse a inconstitucionalidade da iniciativa.
O defensor público Jovino Bento Júnior tentou processar a empresa, alegando “critérios discriminatórios” com “marketing de lacração” – a Justiça julgou improcedente o processo. Não era lacração, era oportunidade e uma tentativa de minimizar os privilégios da população branca.
Pela primeira vez, Raíssa – assim como outros tantos profissionais negros – acreditou na chance de passar em um programa de trainee. “Eles tiraram as barreiras que me impedia de me inscrever. Os outros programas pediam fluência em inglês e quem passava era muito ali do eixo Rio-São Paulo, formado na FGV. Aquilo não era a minha realidade, não fazia sentido para mim”, conta. “Eu sempre falo: eles deram oportunidade a uma pessoa que, na teoria, não era para estar aqui.”
As barreiras da vida
Não foi um caminho fácil. Nascida na pequena cidade de Bananeiras, sem ensino superior, os pais batalharam pela educação de Raíssa e de seu irmão. Aos 12 anos, ela ganhou uma bolsa para estudar balé em Maceió. Foi quando percebeu a discrepância entre os estudos dela e de seus colegas. “Eu falava para o meu pai: o livro das meninas é muito mais grosso que o meu”, relembra.
Empregado em uma usina como coordenador automotivo, o pai decidiu colocar a garota em um colégio particular na capital. Fechou um acordo para pagar todas as mensalidades de uma só vez no fim do ano, quando caísse o 13º. Assim, todos os dias, por anos, Raíssa saía de casa às 5 da manhã para viajar até a capital e estudar.
Mudança de vida
Os esforços renderam a aprovação, logo no primeiro vestibular, de Raíssa no curso de administração. “Eu vi no início que aquele curso não era para mim. Era um curso muito branco, com muitos filhos de empresários. Então as disciplinas eram muito voltadas para empresários”, conta.
No sexto período, conseguiu se transferir para o curso de Economia. Ali ela se encontrou. “Isso mudou minha vida. Uma das minhas professoras, a Milani, estava começando um grupo de estudos em Economia Solidária, em 2017. Eu nunca tinha ouvido falar disso”, diz.
“Comecei a estudar Celso Furtado, entender o que era um país subdesenvolvido, em desenvolvimento, e quais as consequências disso vivendo em Alagoas. Eu conseguia fazer as ligações, porque meu pai trabalhava muito e não avançava. Não conseguia uma casa ou carro próprio.”
Mais do que isso, o grupo da professora a colocaria em contato com o mundo do artesanato – experiência que ela levaria, depois, para o Magalu. A ideia era organizar as artesãs do estado e formar uma cooperativa para fortalecê-las.
Raíssa visitou 27 cidades, convencendo essas mulheres sobre a importância em se juntarem para comprar produtos a preços mais baixos e potencializarem suas vendas, em conjunto.
“Era um trabalho de formiguinha, a gente batia na porta delas. E elas tinham medo, era só um projeto da universidade, tinha uma briga entre elas”, conta. Apesar do receio, o projeto vingou. As mulheres se uniram e hoje têm um ponto fixo de vendas, além do canal no Instagram.
Nesse meio tempo, Raíssa trabalhava no IBGE e recebia bolsa do CNPQ – quando o governo Bolsonaro cortou o incentivo, a professora Milani tirou dinheiro do próprio bolso para ajudar a estudante. Até que um amigo contou a ela sobre o programa de trainee do Magalu.
A entrada no Magalu
Raíssa estava no sertão de Alagoas quando recebeu um e-mail do RH do Magalu. Era um convite para participar de uma live. Ela agradeceu, mas disse que não seria possível.
Estava no meio do nada, com uma internet capenga. “Eu estava dando uma formação às mulheres e eu tinha muito respeito pelo tempo delas. Minha professora sempre cobrou isso: se a gente vai tirar essas mulheres dos afazeres delas, não existe isso de não dar atenção”, afirma.
O RH ligou e insistiu. Ela se ausentou por alguns minutos, foi até um carro, onde encontrou sinal de internet e participou da live. E veio a notícia: ela havia sido aprovada para participar do trainee.
Com um salário de quase 7 mil reais, se mudou para São Paulo e passou um ano conhecendo todos os processos e setores da rede varejista. No final do programa, em dezembro de 2021, os aprendizes precisavam escolher um dos projetos pouco desenvolvidos do Magalu para tocar.
“Eles dão um projeto para você desenvolver e apresentar até para os diretores. Conheci o Mundo Social, um projeto que só contava com quatro ONGs e tinha um faturamento de 2 mil reais. Tinham criado na pandemia, mas não tinha andado muito”, lembra.
“Na hora eu pensei: isso é a minha praia! Era o que eu fazia na UFAL, só que dentro de um ecossistema gigante, com orçamento. Apresentei esse projeto e, ao final do curso, tive a grata surpresa de ser contratada para trabalhar nesse setor.”
Além do cargo de analista de sustentabilidade no projeto, que coloca à venda produtos de ONGs e pequenos artesãos, Raíssa se tornou líder em um grupo de afinidades chamado Quilombo.
Ela desenvolveu um grupo com mais de 200 pessoas. “Eles falam que existia um Quilombo antes e depois de mim. O que nos unia era o marcador social da raça, e ninguém falava sobre raça, não fazia sentido! E eu pensei: como vou fazer elas se sentirem seguras para falar sobre isso? O meio que eu encontrei foi me mostrar vulnerável”, conta.
A história que contou a eles foi a da própria vida. Por mais que fosse bailarina, nunca era chamada para dançar nas festas de São João na escola – ou ficava entre as últimas escolhidas.
“Eu lembro de pedir à minha mãe para fazer um vestido bem bonito, porque eu queria ser escolhida para dançar. Meu aniversário é no São João. Eu levei muito tempo para entender que aquilo não era uma questão minha, não é porque eu era feia. Essa história foi transformadora no Quilombo. Eu sou a liderança que chora”, diz.
As falas sobre raça no Quilombo deixaram de ser um tabu e, aos poucos, o Mundo Social cresceu. Raíssa comemorou cada vitória: os primeiros 100 parceiros, o primeiro milhão de faturamento. “Quando batemos os 100 parceiros foi uma felicidade enorme. Eu participei das reuniões com cada um deles. Quando batemos um milhão em vendas, foi outra alegria! As pessoas pensam: ‘ah, um milhão o Magalu vende em meia hora’. Mas eu tô falando de um milhão para pessoas que são invisibilizadas, que não tinham coragem de vender seus produtos numa rede tão grande”, comemora.
Uma das parcerias mais recentes é com a Marina Bitu, grife de moda cearense que preserva e valoriza as culturas brasileira e nordestina por meio do design e do uso de matérias-primas naturais.
O time de Raíssa costurou um acordo entre a marca e a FIBRAARTE, uma associação de 20 mulheres artesãs da cidade de Missão Velha, no Ceará, para criar dois produtos exclusivos para a collab: um chapéu e uma bolsa, feitos com fibra de bananeira e técnicas de crochê.
Há quatro meses, após a licença maternidade de sua coordenadora, Raíssa se tornou líder do Mundo Social. E hoje ocupa o cargo de especialista em diversidade e inclusão e responsabilidade social.
Seu trabalho não é mais de campo, tão próximo às artesãs. É bem mais estratégico e cheio de reuniões. “É um trabalho de convencimento. Por exemplo, a Lu [Luiza Trajano] vai usar o chapéu e a bolsa da Collab com a Marina Bitu. Meu trabalho hoje é abrir espaço dentro do nosso market place. É marcar reuniões, convencer sobre nossos projetos”, diz.
Raíssa olha para trás e para o presente com orgulho – e sonha com novas promoções até chegar, um dia, ao cargo de diretora da empresa. “Tem uma frase do Emicida que eu amo e sempre lembro: para quem mordeu cachorro por comida, até que eu cheguei longe.”
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