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Qual é o lugar da beleza? Revisitar nossa história pode ajudar a entender

A historiadora Mary Del Priore fala das relações que, ao longo da história, a brasileira estabeleceu com a vaidade e os padrões de beleza.

Por Giovana Feix
Atualizado em 12 abr 2024, 16h28 - Publicado em 26 set 2016, 06h05
Ile Machado/Carolina Horita/Camilla Loureiro (/)
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A primeira menção à beleza da mulher brasileira acontece já na “certidão de nascimento” do país: a famosa carta que Pero Vaz de Caminha escreveu ao rei de Portugal sobre o descobrimento. “Ali andavam entre eles três ou quatro moças, bem moças e bem gentis, com cabelos muito pretos, compridos pelas espáduas, e suas vergonhas tão altas, tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as muito bem olharmos, não tínhamos nenhuma vergonha”, escreveu o moço, em 1500 – também sem vergonha alguma, aliás, de relatar o que viu.

Em meio à popularização do cinema e de mídias como o rádio e as revistas, no entanto, é muito mais adiante, nos anos 1950, que o concurso de Miss Brasil toma a forma que conhecemos hoje. Mas o que nos levou a esse momento? E o que é que nos fez, ao longo do caminho, distinguir o “feio” do “belo” nos corpos das brasileiras? Autora de mais de 30 livros, dentre eles História das Mulheres no Brasil e Corpo a Corpo com a Mulher, a historiadora Mary Del Priore esclarece e elucida as respostas para essas questões.

Entre Pero Vaz e D. João – Do século XVI ao XIX

Ile Machado/Carolina Horita/Camilla Loureiro Ile Machado/Carolina Horita/Camilla Loureiro

“Na carta considerada fundadora da história do Brasil, já tem um conceito de beleza feminina introduzido”, explica Del Priore. “Pero Vaz comenta a nudez, a depilação e o fato de as índias apresentarem ingenuidade. E a nudez delas não era erótica em si – já que, na época, era vista como sinônimo de pobreza -, mas, na leitura do português, aquilo consagrava a elas uma pureza”, conta.

Entre o descobrimento no século XVI e o século XIX, vários dos viajantes estrangeiros que exploraram o Brasil também mencionam, em seus registros, a aparência das mulheres que encontravam pelo caminho. Em todo esse período, no entanto, a beleza feminina era vista como um fator “periférico” – e não influenciava certas escolhas, como o casamento. “O trabalho e a capacidade de acumular riquezas distinguiam mais uma mulher do que a sua beleza física”, explica a historiadora. Na época, a gordura corporal era associada ao desemprego e ao ócio – o que, junto da valorização do trabalho, deixa bem evidente a maneira como eram vistas, nessa época, as mulheres gordas.

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Alguns aspectos essenciais à noção atual de beleza feminina já se faziam presentes no Brasil de então. É o caso da valorização dos cabelos compridos, por exemplo. “Nessa época, para você ter uma ideia, elas compravam cabelo de mulheres mortas quando não tinham cabelos bonitos. Eles eram oferecidos na rua, junto de produtos como frango, leite, água”, conta Del Priore.

Além dos fios longos, eram admirados também os olhos escuros e profundos. “Os olhos eram considerados capazes de transmitir mensagens de amor, de ciúme… Eram a única parte do corpo que os homens conseguiam ver”, relata a especialista.

Abra-te Sésamo: o século XIX e a abertura dos portos

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Pode ser que você não se lembre mais tão bem das aulas de história, mas Mary Del Priore te explica: em 1808, fugindo de Napoleão, a família real portuguesa veio morar no Brasil. Com isso, os portos brasileiros foram abertos para navios de vários outros países. “Nessa época, há uma série de técnicas e serviços que migram para cá”, diz a especialista. Essa abertura dos portos permitiu a importação de novos tipos de produtos – dentre eles, vários itens de beleza.

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Contrariamente ao que muitos acreditam, a noção de que os brasileiros herdaram seu senso de higiene dos índios não passa de um grande mito. A chegada de serviços como cabeleireiros e dentistas vindos da Europa, nessa época, é o que começou a mudar os hábitos que se tinha antes por aqui. “Tudo isso vai alterar a percepção da mulher brasileira sobre sua higiene. Até então, não chegava água encanada nos domicílios e não se tomava banho todos os dias”, conta a escritora.

Outro mito bastante difundido a respeito dos índios é que, quando os portugueses chegaram, entregaram aos nativos espelhos em troca das nossas riquezas naturais – o famoso “escambo”. De acordo com Del Priore, porém, isso tampouco é verdade. “Nos séculos XVI e XVII, os espelhos eram caríssimos até mesmo na Europa. Tiveram trocas, mas inicialmente elas foram com facas, instrumentos de trabalho e lavoura e bugigangas pequenas, como miçangas”, explica.

Aliás, falando em espelho, foi só depois da abertura dos portos que ele se popularizou no Brasil. Mas, mesmo assim, ainda fica bem longe do lugar que ocupa hoje em nossas vidas. “O espelho é uma característica do bordel, no século XIX. Lá, a mulher pode se exibir, fazer encenações. Na casa de família, nessa época, o espelho só existe na entrada e no sala de jantar, não tem em nenhum outro lugar”, conta a historiadora. Junto com o espelho, a vaidade não tinha lugar central na vida da mulher nesse período. Preocupar-se com a própria aparência era um pecado perseguido pela Igreja e condenado pela sociedade.

“Nessa época, a avaliação da mulher sobre si mesma estava sempre no olhar do outro. Esse olhar é centrado por outros critérios [fora a beleza]. Estavam interessados na família ser rica, ter terra, escravos; na educação ser de menina católica, religiosa”, afirma a especialista.

Beauty Boom – O que chega com o século XX?

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Anos 1920 – 1930

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O começo do século XX marca a chegada e popularização de tecnologias importantíssimas para entendermos a cultura do Brasil – e do mundo – até os dias de hoje. É o caso do cinema, do rádio e da mídia impressa, por exemplo. “Até então, não estava tão definido um critério de beleza. Mas com o cinema, com a imagem na tela, determinados tipo de beleza começam a se consagrar: as loiras dos filmes norte-americanos, as italianas corpulentas… Tipos mais específicos de corpos e cabelos”, diz Del Priore.

Com a urbanização e industrialização a todo vapor no Brasil dessa época, cresce também o número de produtos de beleza – e de seus anúncios “encantadores” nas revistas, cada vez mais numerosas e populares. “Promessas de peito duro com uma pomada que se passasse, produtos para clarear a pele… A praia também entra na moda nessa época: era considerado saudável, um prazer hedonista. Mas a mulher não podia passar mais de 10, 15 minutos nadando: a ideia era continuar com a pele branca – o que também se articula com o racismo“, pontua Mary.

Antes da chegada desses novos modelos de beleza, as negras, aliás, tinham sua beleza mais valorizada. De acordo com a especialista, elas usavam seus corpos e cabelos como uma “tela de pintura”. “Os viajantes sempre destacaram a beleza da mulher negra. Ela usa seu corpo mesmo sem vestes caras, no século XVIII. Usa marcas no seu corpo. Seus cabelos eram sempre penteados com coisas incríveis”. Como a chegada da mídia trouxe força à beleza eurocêntrica da mulher branca, as negras ficaram de fora desse padrão.

Nas revistas, por conta das mulheres estarem no mercado de trabalho, começam a aparecer dicas de como se vestir sem meramente “copiar” o estilo das estrelas de cinema. Não seria apropriado, afinal, um provocador vestido vermelho para ir ao escritório. “As revistas vão orientar como se vestir: é como um código de conduta”, situa Del Priore.

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Anos 1950

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Com a popularização da TV, o cinema perde um pouco de sua força – e enquanto as “imagens nas telas” se ampliam, elas também se tornam cada vez mais importantes para o estabelecimento de padrões. Segundo a historiadora, é aí que eles começam a ficar mais e mais homogêneos. Com o que ela chama de “bombardeio” das telenovelas, vai se formando uma “galeria de tipos que vão ser perseguidos como bonitos”. Até hoje, esses tipos envolvem principalmente loiras “falsas”, com cabelos tingidos – que, apesar da plataforma diferente, ainda trazem muito das estrelas de Hollywood.

Somos um país de mulheres morenas e pardas e é uma pena batermos na tecla de um modelo que não é o nosso.

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É justamente nesse momento histórico, aliás, que surge tanto o concurso Miss Universo, em 1952, quanto o Miss Brasil, em 1954.

Anos 1960, 1970

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Nessa época, chegam ao mercado três produtos essenciais para a compreensão do que sustenta os padrões de beleza: a boneca Barbie, as academias de ginástica e os canais de venda, ao estilo Polishop. Juntas, essas três novidades conseguem padronizar ainda mais o corpo da mulher brasileira, que passa a querer ter peito grande e a querer (ainda mais que antes!) ser loira. “Nessa época, chega tudo o que a mulher precisaria para conseguir se parecer com a Barbie – inclusive, mais adiante, a democratização da cirurgia plástica”, conta Del Priore. A padronização, com isso, vai ficando cada vez mais forte, palpável e presente no mundo real.

Ao mesmo tempo, ocorre nessa década uma “explosão da juventude”, como chama a historiadora. O movimento hippie, o feminismo e, acima de tudo, a pílula anticoncepcional mudam completamente a realidade e as possibilidades contempladas pelas mulheres da época – e não só no âmbito sexual. A chegada da pílula muda também o padrão de beleza: se antes a gordura chegou a ser sinônimo de formosura e a magreza, de doença, agora, por conta dos hormônios sintéticos, o corpo feminino não é mais o mesmo. Os quadris e os corpos como um todo diminuem de proporção. As musas do cinema acompanham as mudanças: “A mulher de terninho executivo, no cinema americano, ‘vai à luta de terninho’: a pílula já mudou o corpo dela também”, relembra a especialista.

De volta para o futuro – E o século XXI?

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Se até agora foi a chegada de imagens às telas a maior influência na nossa forma de ver o belo (ou, mais especificamente, a bela), a multiplicação frenética de imagens que vem com o novo século possibilita, a passos lentos, uma ampliação no espectro daquilo que consideramos bonito. Depois do surgimento da internet e das redes sociais, qualquer um consegue compartilhar com o mundo sua imagem.

Antes, ficava fora do alcance do público a escolha das imagens da “beleza” veiculadas pelo cinema, pela TV e pela imprensa. Hoje, isso não acontece mais: qualquer um com acesso à internet pode ver e ouvir pessoas do mundo todo. Apesar de o cenário ainda não ser ideal, ele com certeza ajuda a perceber que os padrões preestabelecidos não são, digamos, tão interessantes quanto um dia já pareceram ser.

Em meio a esse novo contexto, surge também uma nova onda do feminismo – o que nos faz questionar os padrões com ainda mais força. Até mesmo os concursos de Miss estão sentindo, aos poucos, o baque destas mudanças – se em mais de 60 anos de existência, por exemplo, só quatro negras foram coroadas Miss Universo e só uma foi Miss Brasil, as coisas parecem estar mudando. Em 2016, seis das 27 finalistas do Miss Brasil são negras: Vitoria Esteves (Bahia), Beatriz Leite (Espírito Santo), Deise  D’Anne (Maranhão), Raissa Santana (Paraná), Maria Theol Denny (Rondônia) e Sabrina Paiva (São Paulo). Aliás, a Miss Estados Unidos 2016 também é negra – o que mostra que, aos poucos, começamos a ver mais diversidade das belezas nos concursos.

Diante das mudanças mais recentes e da história do país como um todo, tudo que podemos esperar é que essa flexibilização contemple cada vez mais os tipos diferentes de beleza, levando cada vez mais em consideração as variações de cor, peso e cabelo das mulheres – participem elas de concursos ou estejam ao nosso redor, na vida cotidiana. Fora isso, quem sabe com essa multiplicação das imagens seja também possível questionarmos (e aí já é outra história): para que a mulher precisa da beleza? Será que ela precisa mesmo?

Continue acompanhando o Especial Beleza Diversa aqui >> Doenças da beleza: quando a vaidade se transforma em obsessão

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