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Traumas, gatilhos e cura: entrevista com Gabor Maté

Em entrevista exclusiva, o médico húngaro-canadense, autor do best-seller "O Mito do Normal", fala do excelente documentário "A Sabedoria do Trauma"

Por Helena Galante
23 set 2023, 07h06
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  • Ansiedade, doenças crônicas e vícios estão em toda parte, não é só impressão. Enquanto tantos ao nosso redor parecem perder a saúde de alguma forma, e muitos tentam sossegar nosso incômodo com essa situação dizendo simplesmente que “é normal”, um médico tem levantado a sua voz mundialmente para apontar um fator comum por trás dessas condições interconectadas: o trauma.  “Na minha concepção, trauma é principalmente o que acontece dentro da pessoa como resultado de acontecimentos difíceis ou dolorosos que lhe acometem; não são os acontecimentos em si”, escreve o médico húngaro-canadense Gabor Maté em O Mito do Normal (Ed. Sextante), livro mais vendido no Canadá e best-seller pelo The New York Times.

    “Passei a acreditar que, por trás da verdadeira epidemia de mazelas crônicas, tanto mentais quanto físicas, que assolam nossa época, existe algo de errado com nossa própria cultura. Da proximidade com o sofrimento humano, adquirida nos anos de prática médica em setores ainda negligenciados como tratamento de vícios e estresse, Dr. Gabor passou a reconhecer que, com um olhar compassivo, poderíamos socialmente aprender com nossas dores. 

    Trauma não é o que acontece com você, mas sim o que acontece dentro de você. É UMA FERIDA PSÍQUICA

    Gabor Maté,

    Essa visão é brilhantemente registrada no filme A Sabedoria do Trauma, assistido por cerca de 6 milhões de espectadores em mais de 230 países e finalmente exibido no Brasil pela Aquarius, plataforma de streaming focada em bem-estar, idealizada por Bruno Wainer. Seja numa prisão, junto de pessoas em situação de rua ou adictos, acompanhamos no documentário Maté rechaçar qualquer postura punitivista e investir em compreender a origem das aflições que desembocam nos comportamentos. “Os problemas das pessoas estão conectados com algo que aconteceu a elas quando ainda muito jovens. Elas seguem certos padrões de defesa para não sentir a dor daquelas experiências. O vício, por exemplo, não é uma doença do cérebro, não é uma escolha, é uma forma de encontrar certo alívio a curto prazo, mesmo que com prejuízos a longo prazo.”

    Ainda que drogas sejam as primeiras associadas ao vício, outros padrões estão ligados a essa vontade de escapar de uma realidade sufocante. “Pode ser também compras, apostas, sexo, pornografia, jogos, automutilação, bulimia, trabalho, internet, telefones celulares, quase qualquer coisa…”, continua o médico, escritor e palestrante. Difícil não dar check em pelo menos um item da lista, não é? A partir dessa percepção compartilhada que as marcas de experiências difíceis ficam impressas na nossa fisiologia e psique, Dr. Gabor Maté desenvolveu um método chamado de investigação compassiva, ensinado ao redor do mundo, para ressignificar as marcas passadas. “Na minha mentoria, ensino a não perguntar por que o vício, perguntar por que a dor. E se você quer entender a dor das pessoas, não olhe para seus cérebros, olhe para suas vidas. É preciso perguntar: o que aconteceu com você?”

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    Cena do documentário A Sabedoria do Trauma. (Aquarius/Divulgação)

    Na história do próprio Gabor, a dor apareceu  forte quando ainda era muito jovem, durante a Segunda Guerra Mundial, em Budapeste, território ocupado pelos nazistas. Sua mãe, judia, se viu obrigada a entregar seu pequeno bebê de 14 meses para uma desconhecida levá-lo até parentes que estavam em condições mais seguras. Foram cinco ou seis semanas de separação, que marcaram profundamente todos os envolvidos. O abandono temporário, ainda que  tenha sido fundamental para sua sobrevivência, deixou marcas na forma de reagir, produzindo respostas que não vêm das partes racionais e autorregulatórias do seu cérebro maduro. 

    Em A Sabedoria do Trauma, ele abre o jogo sobre como já tentou lidar (sem sucesso) com seus próprios traumas: trabalhando como um workaholic ou descontando medos e inseguranças na relação com sua esposa, Rae, diante do menor gatilho. “A razão pelo qual o gatilho funciona é porque eu sou uma ignição e há uma carga explosiva ali. Então, quando sinto o gatilho, posso pensar em qual era a questão iminente que estava carregando. Contanto que as pessoas se esforcem para serem autorreflexivas e apoiem as questões do outro, então elas podem se curar juntas de seus traumas”, diz.

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    Entre as ferramentas no processo de cura utilizadas pelo Dr. Gabor estão os psicodélicos, em especial a ayahuasca. Na conversa com CLAUDIA, ele relembra um episódio que aconteceu num retiro no Peru, com psiquiatras, médicos, psicólogos e conselheiros de vários países que foram trabalhar com ele. “Eu não sou um xamã, eu não lidero cerimônias feitas por nativos, mas eu lidero o retiro”, conta. “Nós tivemos a primeira cerimônia e na manhã seguinte os xamãs fizeram um comitê e me disseram: nós não podemos trabalhar com você, há tanto estresse e escuridão em você que isso afeta todo o espaço. Então eles me demitiram do meu próprio retiro”, continua, deixando escapar risadas pela ironia da situação. Na ocasião, um dos nativos foi designado para cuidar dele em privacidade, para depois retornar ao grupo. “Eles não me conheciam, veja bem, mas disseram: Nós achamos que quando bem pequeno, você tinha um grande medo que você ainda não superou. O que é totalmente verdadeiro. E eles continuaram: Achamos que você trabalha com pessoas com traumas de todos os tipos de energia e você não purificou a si mesmo, então é assim que você adquire muita escuridão. Eles descobriram em uma noite o que uma dezena de psiquiatras demorou anos para descobrir, porque eles me leram energeticamente, que é onde eu sou visto.” 

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    Documentário “A Sabedoria do Trauma” já está disponível no Aquarius. (Aquarius/Divulgação)

    Como dar conta de oferecer uma presença repleta de compaixão diante de tantas dificuldades humanas, sem deixar que a desesperança nos adoeça? “Quando eu cuido de mim mesmo, quando eu não estou viciado no meu trabalho, algo que acontece facilmente, quando trabalho minha respiração, pratico um pouco de yoga, me certifico de ir nadar ou pedalar de bicicleta, então eu posso estar com as dores das pessoas sem absorvê-las. Mas se eu não cuido de mim mesmo, então eu posso ficar muito estressado”, relata o médico. 

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    Incapaz de considerar aceitável os níveis de adoecimento físico e mental da população mundial, assim como a capacidade humana de destruição da natureza, Dr. Gabor Maté enxerga na desconexão de nós mesmos a raiz desses problemas. Mas segue otimista em relação à nossa possibilidade de transformação.  “A questão é: nós desejamos aprender com a nossa dor, ou apenas fugimos dela? A dor por si só, não leva à libertação; a dor e a curiosidade e a consciência levam à libertação.” Em O Mito do Normal, assim resume: “A cura não está garantida, mas está disponível. Não é um exagero dizer, a essa altura da história da Terra, que ela é também necessária. Tudo que vi e tudo que aprendi ao longo dos anos me dá a certeza de que nós a temos dentro de nós”.

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