Gentileza excessiva? Entenda se você está se anulando nas relações
Numa tentativa de deixar as pessoas confortáveis o tempo todo, podemos nos colocar nas situações mais desconfortáveis possíveis
Todos nós já passamos por aquela situação clássica em que abrimos mão de algo em prol de outra pessoa… E está tudo bem. Às vezes, colocar quem amamos em primeiro lugar é um ato de carinho e atenção. Porém, quando esse raciocínio se transforma numa regra, é necessário reservar um tempinho para refletir. Se você está sempre abandonando seus planos, deixando de falar o que pensa e vivendo para deixar as pessoas confortáveis, algo pode estar errado. A linha que separa a ‘gentileza’ da ‘subserviência’ é extremamente tênue, e compreender em qual lado estamos nesta equação faz toda a diferença para a nossa autoestima.
Para entendermos o que realmente significa ser gentil — e como não se anular enquanto tentamos ajudar o mundo —, Claudia entrevistou a psicóloga Alessandra Kovac. Veja a seguir:
Gentileza x subserviência: como diferenciar?
De acordo com Alessandra, a gentileza acontece quando priorizamos o próximo por motivos pontuais e racionais. Sabemos que precisaremos abrir mão de certas coisas, mas ao avaliar os prós e contras, a concessão faz sentido e não nos fere.
Contudo, a história é bem diferente quando, ao analisar quaisquer situações, sempre chegamos a conclusão de que o correto é satisfazer os outros — e nunca a si mesmo. Neste caso, estamos falando sobre subserviência.
“Pessoas altruístas acabam sendo mais suscetíveis a cair no ‘autoanulamento’, porque se sentem no dever de estar constantemente ajudando e defendendo o bem-estar alheio. Aliás, esse não é o problema. Mas ao ajudar o outro, não podemos nos prejudicar”, esclarece.
Kovac brinca que, até mesmo em obras religiosas e tradicionais como “A Bíblia”, a mensagem é clara: devemos amar o próximo como a si mesmo, não mais do que a si mesmo.
Estabelecer limites não é sinônimo de egoísmo
Quando falamos sobre não cair na subserviência, é impossível deixar de enaltecer a importância de estabelecermos limites em nossas relações — sejam afetivas ou profissionais. E não se engane: isso não é sinônimo de egoísmo.
“O egoísta só consegue pensar em si mesmo o tempo inteiro. Agora, precisamos de equilíbrio: a gentileza exagerada também não é positiva. O excesso ou a falta são prejudiciais. E percebemos isso quando nos damos conta de que estamos em segundo plano a todo instante”, aponta Kovac.
Alessandra reafirma que, por mais que soe clichê, o autoconhecimento é a chave para compreender o assunto: “Muitos ainda não pararam para pensar em suas próprias limitações e dores. Esse é o primeiro passo para conseguirmos, aos poucos, definir se aceitamos ou não determinadas situações.”
Será que estou me anulando?
A especialista afirma que as pessoas tendem a achar que os relacionamentos tóxicos são construídos apenas com situações graves. Porém, são nas pequenas atitudes do dia a dia que percebemos se o que estamos vivendo é saudável (ou não). “Se as coisas só acontecem quando o outro quer — e você não tem voz ativa —, repense”, alerta. Isso vale tanto para amizades como para vínculos amorosos.
O ambiente profissional também pode nos fazer ser subservientes, já que as questões financeiras pesam quando o assunto é definir limites. “O medo de perder o emprego é completamente compreensível. Portanto, pondere: se uma situação fere os seus princípios e interfere em sua vida pessoal, talvez esteja na hora de reavaliar tudo e se impor. Agora, quando abrimos mão do que queremos sem desrespeitar nossas particularidades, estamos apenas lidando com o jogo institucional. Estar numa equipe implica em nem sempre ter nossas vontades individuais satisfeitas, então precisamos ceder de vez em quando.”
Por fim, Alessandra declara que, apesar de muitos não perceberem, a maternidade faz as mulheres se anularem: “Tem horas que é impossível não priorizar os filhos. Mas nós cuidamos da casa, das crianças e do emprego. Nos viramos nos 30. E ,de certa forma, isso nos faz zelar por todos, menos por nós mesmas. Sei que esses são exemplos genéricos, mas eles mostram o quanto a subserviência reside nos cenários mais normalizados pela sociedade.”
Autoconfiança para estabelecer limites
Precisamos largar a ideia de que dizer “não” é algo negativo. Estabelecer limites é e deve ser encarado como algo saudável. E para Kovac, tudo vai depender da maneira que fazemos isso. “Quando negamos algo e o próximo não entende o porquê, ele irá interpretar de qualquer jeito. Agora, quando explicamos o ‘não’ com tranquilidade e clareza, fica mais fácil chegar num acordo”, indica.
Nem sempre é fácil ter essa postura, já que a insegurança pode nos impedir de defender nossos ideais. Mas isso não significa que não temos valor ou capacidade para nos posicionar: “Esse é um longo processo interno. Precisamos reconhecer nosso potencial para expressar o que desejamos com confiança. Diante disso, eu repito: o autoconhecimento é essencial.”
Por fim, a profissional nos relembra: a insegurança é um sentimento normal. “Todos nós temos e é natural. Mesmo tendo razão, podemos ficar inseguros para transmitir o que sentimos. Portanto, não se cobre estar completamente confiante ao impor limites.”
Por que você não deveria se anular?
Segundo a psicóloga, o princípio humano é buscar a realização e a felicidade. E, aqui, Kovac pontua que não está se referindo ao ideal fantasioso do que é ser feliz. “A felicidade está nos pequenos detalhes do dia a dia. Está em gestos e aspectos minúsculos. E as pessoas acabam abrindo mão justamente desses aspectos”, explica.
“A felicidade não é um estado constante: nós criamos momentos individuais de satisfação, e por isso, é necessário assumir as rédeas da vida. Quando nos anulamos para ser gentis e estar bem com a sociedade, estamos alimentando uma felicidade ilusória. Estamos deixando tudo morno, deixando de viver como deveríamos”, declara.
Portanto, a especialista traz um conselho final: analise diariamente quais são os pequenos aspectos do seu dia a dia que fazem a diferença, e que você não gostaria de abrir mão. “A vida acontece nos detalhes. Ignorar isso é se privar de momentos alegres. E juntando tantas concessões, podemos acabar tendo uma noção de que não tivemos uma boa existência”, conclui.