Sabe quando Alice, do conto clássico de Lewis Carroll, cai em uma toca de coelho, vai parar num jardim mágico, fala com gatos sorridentes e toma chá com uma lebre de março? Se lembrarmos bem, ser criança é quase assim. Em alguns segundos, as atividades mais banais — como tomar banho ou olhar para o céu — podem se transformar numa fantasia de imaginação livre e fértil.
É difícil dizer o mesmo sobre a vida adulta: conforme envelhecemos, precisamos construir padrões de comportamento para manter a produtividade. Não há tempo para brincadeiras ou devaneios, e a racionalidade corrompe aquela alegria de reagir ao mundo com espontaneidade.
E isso, além de nos adoecer, colore a existência em tons cinzentos. Para Ariane Senna, psicóloga e mestra em estudos étnicos e africanos pela UFBA, as raízes dessa rigidez que acompanha o amadurecimento são bem esclarecidas na obra O Mal-Estar na Civilização, de Sigmund Freud. “Somos moldadas a ser mais racionais do que emotivas. Passamos por esse ensina- mento de que a seriedade é item obrigatório para encontrarmos respeito na sociedade. Consequentemente, experimentamos uma série de castrações que nos afastam de nossa identidade”, explica a especialista.
Nesse contexto, cresce a importância de “resgatar a criança interior”: ao esquecer essa parte de nossa persona, perdemos a chance de levar a rotina com leveza. “Vivemos num contexto sociopolítico de desigualdade, especialmente no Brasil, onde enfrentamos fome, miséria, pobreza extrema e outros problemas estruturais que não serão solucionados de um dia para o outro. Se não nos permitirmos vivenciar essa criança interior, a probabilidade de adoecermos mentalmente é enorme”, diz. Mas, claro, não podemos ignorar que retomar a faceta infantil nem sempre é tarefa simples.
“A criança interior está interligada às relações de gênero. Um exemplo é a falácia de que meninos não choram. Conheço homens mais velhos que não conseguem expressar sentimentos porque foram instruídos a engolir o choro desde cedo. Fica difícil resgatar aquilo que foi constantemente reprimido, pois não há um referencial”, pontua.
O mesmo vale para outros recortes, como raça e classe: “Aquelas que tiveram a infância dura precisaram amadurecer muito cedo, e podem ser praticamente incapazes de resgatar algo que nunca lhes foi oportunizado. Já no caso do racismo, as meninas pretas que não puderam ser vistas como belas ou semelhantes a bonecas são impedidas de alcançar aquela felicidade integral de ser criança”, afirma Ariane Senna.
A psicóloga e psicanalista Raquel Baldo complementa relembrando que, frequentemente, temos a sensação de que retomar a infância significa reviver apenas momentos de felicidade. “Crianças são seres que também passam por angústias. Não é incomum que um adulto tão racional tenha precisado se estruturar dessa forma para lidar com os sentimentos. Excesso de racionalidade é um mecanismo de defesa do inconsciente. Aprender a lidar com isso é difícil, e é necessário suporte e amparo, sobretudo profissional.”
(Re)Colorindo o mundo
De acordo com Raquel Baldo, por mais que o nascimento represente o momento em que estamos mais próximos de nossa “essência”, é uma utopia acreditar que podemos ser completamente nós mesmos, em qualquer fase da vida. “Assim que chegamos neste mundo, precisamos que alguém sinta as coisas por nós. Por exemplo: se está frio, preciso que outra pessoa vivencie a baixa temperatura para me agasalhar de acordo com a maneira em que experimenta o clima. Portanto, nossas sensações já sofrem interferência desde cedo.” Dito isso, a psicanalista afirma que atingimos um pico de criatividade e fantasia durante a fase primária da infância. “Estamos falando de um período em que recebemos estímulos e reagimos instintivamente. Criar, aprender e ter sonhos é bem mais fácil por conta das reações instantâneas. Quando bem acolhida pelos pais, essa etapa traz benefícios para a condição psíquica futura.”
Paloma Gomes, psicóloga humanista com foco em atendimento às mulheres e público LGBTQIA+, acrescenta que as crianças conseguem atingir grandes níveis de espontaneidade por serem dotadas de um certo desapego frente ao julgamento alheio. Como perdemos essa potência? Raquel Baldo explica que isso acontece pelo turbilhão de padrões que somos incentivados a seguir para nos sentir pertencentes. “Ensinamos a criança a comer direitinho sem fazer sujeira, não falar palavrão, não chorar… Isso vai reprimindo aquele desejo de liberdade e criação. Um adulto [alguém com mais de 18 anos] já passou por tantos condicionamentos que, provavelmente, age e reage com base em normas. Quando desenvolvemos uma visão de mundo exclusivamente em resultado do que nos é imposto, é importante se questionar”, aconselha.
Retomar e cuidar de nossa criança interior é, portanto e acima de tudo, um processo de autoconhecimento. “A essência não precisa ser algo fixo, porque estamos num constante processo de construção do ser”, diz Paloma, que acredita no cultivo da autocompaixão e do autocuidado como o primeiro grande passo para nos aproximarmos de nosso “eu” da infância. “Quando somos gentis conosco, adquirimos esse olhar carinhoso que nos faz entender até mesmo as dores do passado.” Um segundo momento, para Ariane Senna, é se permitir fazer coisas que sempre sonhou: “A sociedade capitalista exige tanto que deixamos os nossos gostos para trás. Saia para um lugar que sempre quis; fale coisas que gostaria e até hoje não disse; crie possibilidades na rotina. E não se esqueça que muitos precisam recorrer à terapia para conseguir esse despertar”, aconselha.
Por fim, Raquel compara o resgate da criança interior com a leitura de um livro: quando mergulhamos numa obra muito longa, precisamos voltar algumas páginas para entender como a narrativa chegou até ali. O mesmo vale para a vida. “O ponto principal é entender que somos uma única pessoa. Quando ouvimos um adulto falando, estamos escutando a criança que ele já foi um dia, transformada por uma série de vivências. Mas ele ainda é aquela criança, mesmo que guardada lá no fundo. Em alguns momentos, o adulto deve assumir a frente; e, em outros, deixar a criança aparecer — ela tem muita coisa a ensinar.”