Como fazer um relacionamento sobreviver à chegada de um filho?
Um novo bebê costuma vir acompanhado de atritos para um casal. Nessa equação, o amor resiste diante de muita disposição, trabalho e solidariedade
Num misto de cansaço e amor, a mãe segura o filho no colo enquanto mexe o feijão na panela. Na lavanderia, o olhar do pai está perdido diante de uma montanha de roupas manchadas de leite e cocô de bebê, consumido pela rotina. Entre o turbilhão de pensamentos e tarefas a serem cumpridas, há um vazio sentimental: o casal se uniu por amor — mas desde a chegada do filho, é palpável que não se enxergam mais como um par, são apenas duas pessoas com uma criança.
Bebê é uma revolução
Paixão-união-reprodução… Esse é o roteiro que muitas duplas seguem quando começam a jornada de formação familiar. Mas o novo elemento nessa equação é capaz de mover todas as estruturas que antes estavam lá. É o que prova um levantamento feito pela ChannelMum.com, uma comunidade de pais no Reino Unido: após o nascimento de um bebê, um quinto dos relacionamentos termina no primeiro ano, enquanto um terço deles passa por problemas sérios.
Esse foi o caso da influenciadora e graduanda em psicologia Ananda Urias (@ananda.urias). Aos 21 anos, ela viveu a maternidade pela primeira vez de forma solo. Eram apenas ela e a pequena Lara. Mas essa dinâmica não durou muito tempo.
Quando a primogênita estava prestes a fazer dois anos, Ananda começou a namorar, e antes da menina completar quatro anos, Ananda e Victor estavam casados e adaptados a uma rotina em família. Tudo mudou com a chegada da segunda filha. A maternidade e a paternidade não eram novidade para aquele casal, mas eles sentiram o baque.
“Depois da primeira filha, achávamos que nada fosse nos abalar. Não nos preparamos como casal para a chegada da segunda bebê, em 2015, e a Alice revolucionou tudo. Foi nosso momento de crise”, relembra. “A relação ficou em segundo plano. Eu não esperava que iria olhar para o meu marido e dizer ‘sai de perto de mim’ e ‘não me encosta’. Eu tinha uma ideia idealizada de maternidade, que vi nas novelas de Manoel Carlos. Mas foi o completo oposto na vida real”, lembra.
Ressentimento presente
Ananda conta que sua vida passou a ser resumida às burocracias do cotidiano, de buscar Lara no judô a amamentar Alice. A nova filha veio com um bocado de situações inéditas, entre elas, o desafio financeiro. Logo depois do nascimento, Ananda tomou a difícil decisão de abandonar sua própria empresa, o que abalou seu senso de produtividade. Assim, quando Victor chegava em casa, as emoções explodiam e geravam atritos constantes.
“Tudo causava ressentimento”, conta. Elementos corriqueiros do dia a dia se tornaram campo minado, e deixavam a comunicação e convivência cada vez mais frágil. “E olha que ele era um ponto fora da curva: apesar de trabalhar muito, tentava sempre ser um pai ativo em casa”, explica.
“A gente chegou em um lugar complicado, e demorou para perceber”, explica. Foi depois de muitos embates que o casal começou a criar estratégias para voltar a se unir, que iam de esforços para melhorar a condição financeira à contratação de uma ajuda em casa, para que pudessem sair a sós. “Nem que fosse uma hora, nós precisávamos ter um momento nosso: de conversa e conexão. Assim a gente foi se reencaixando.”
Filhos vêm com bagagem
O nascimento de Alice é semelhante ao de muitos bebês, cujas chegadas, apesar de cheias de amor, colocam em pausa o relacionamento dos pais. “Mesmo que o bebê seja planejado e desejado, é comum que ele estremeça o casal. Isso porque, até então, toda a estrutura de vida — desde o acordar até a hora de dormir — era a de dois adultos. Com o nascimento do filho, eles deixam de ser um casal e assumem a função de pai e mãe”, explica Raquel Baldo, psicanalista e psicóloga especialista em casais.
Com o êxtase e o nervosismo que acompanham um novo bebê, pouco se conversa sobre as possíveis mudanças que ele trará para a dinâmica amorosa do dia a dia.
“A chegada de uma criança traz muitas responsabilidades e demandas. O foco do casal agora se move para o bebê”, coloca Isabela Teixeira, psicóloga de mulheres. A nova realidade pode levar a sentimentos de desconexão e até negligência entre os pares, caso não deem atenção à relação.
Entre os motivos que podem acarretar em problemas está a falta de comunicação. “Muitas vezes os dois conversam muito, mas não como indivíduos, e sim como pai e mãe. É aquele casal que perde as histórias que tinha antes do bebê, como se isso fosse um momento de vida do qual precisam se despedir. Assim, deixam de sonhar com a continuidade deles enquanto par”, pontua a psicanalista.
A partir disso, o casal, lentamente, vai perdendo sua intimidade — o que é a porta de entrada para diversos conflitos. Isso inclui a vida sexual, que, com a falta de mistério e sensualidade, fica cada vez mais esquecida.
Os abalos também podem vir quando fica evidente que as estruturas culturais de cada um são muito diferentes, com visões distintas para a criação. Se ambos não desejam os mesmos ideais para o filho, conflitos vêm à tona.
Além disso, muitas famílias ainda adotam um sistema patriarcal de organização, no qual a mulher é encarregada de todas as atividades do lar, enquanto o pai se limita ao trabalho fora de casa.
O resultado são mães sobrecarregadas, solitárias e, muitas vezes, ressentidas.
Em 2019, um estudo do IBGE estimou que as mulheres dedicavam, em média, 21,4 horas semanais aos afazeres domésticos e aos cuidados com pessoas, enquanto os homens gastavam apenas 11 horas. Só esse fator já é o suficiente para causar inúmeros problemas conjugais.
Um novo amor no velho amor
Os abalos, atritos e desconexões, porém, estão longe de necessariamente significar o fim da relação. Para que a união permaneça, é preciso um redesenho, uma nova forma de encaixar as peças no quebra-cabeça familiar.
“O casal, antes de qualquer coisa, precisa se preparar e se planejar emocionalmente. É necessário aceitar que haverá uma transformação na relação, que se tornará triangular. Portanto, é preciso encontrar uma solidariedade conjugal”, explica Raquel
Para a psicóloga de mulheres, a adaptação precisa ser colaborativa e inclusiva, além de baseada na solidariedade — ou seja, pensando nas necessidades individuais de cada um. Nesse sentido, é importante definir tarefas mesmo antes do parto, evitando possíveis discussões sobre quem faz mais ou quem faz menos. Ambos precisam dividir cansaços, dores e alegrias — e aprender a ceder, quando o outro está com alguma necessidade especial.
Assim como Ananda e seu marido fizeram depois, Isabela recomenda marcar momentos sem interrupções: “Reserve tempo para dialogar sobre as próprias queixas, preocupações, buscando soluções que funcionem para ambos. Também é fundamental que os pares se disponham a ser vulneráveis e acolhedores com as demandas de cada um”.
“O que mantém uma relação amorosa ativa é a capacidade de um sonhar com o outro. Um relacionamento precisa possuir essa comunicação que fica nas entrelinhas. Esse é o flerte”, reflete a psicanalista. Portanto, uma das principais estratégias de manter o afeto, o amor e o mistério de antes é reservar espaços no dia a dia.
Pode ser um almoço semanal ou, como faz a Ananda hoje em dia com o Victor, uma noite para relaxar com vinho e um programa. É assim que um casal vai poder continuar criando suas próprias histórias — ao mesmo tempo em que cria um novo ser humano.