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Fantasmas de uma relação abusiva

Rancor, raiva e dor após um relacionamento tóxico podem ser profundos, mas vale a pena passar por essa montanha-russa para curar sequelas emocionais

Por Joana Oliveira
11 nov 2022, 09h31
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  • Faz quatro anos que Roberta Bento, 53, se separou. Faz dois anos que ela sente que ganhou uma nova chance na vida. Após um casamento de três décadas, do qual sua única filha é fruto, ela se deu conta de que viveu um relacionamento abusivo. “Sempre passava Dia das Mães, aniversários e outras datas comemorativas chorando, porque ele brigava comigo. Fazia eu duvidar de mim mesma. Se algo o desagradava, ficava dias sem falar comigo, chegou a passar um mês sem sequer me dirigir a palavra… Isso que dormíamos na mesma cama”, lembra a educadora e empresária. Em 2018, quando o ex foi embora com uma amante — não sem antes convencê-la a vender a casa da família —, o mundo desabou. Ela, que era vice-presidente de uma multinacional e havia construído a estabilidade financeira do casal, perdeu tudo. “Foi um susto muito grande, eu não queria acreditar que aquilo estava acontecendo. Tive medo, não quis entrar na Justiça”, conta Roberta. Com a ajuda da filha, ela deu os primeiros passos para se fortalecer e curar as cicatrizes daquela relação.

    Mesmo sendo culta e independente, Roberta não percebia que o tratamento de silêncio e o gaslighting (que faz a vítima duvidar de si) eram sintomas tóxicos em seu casamento. “Era chocante me ver naquele lugar!”, lembra ela, que emagreceu 10 quilos em poucos dias. O primeiro passo para superar o trauma foi buscar terapia. “A psicoterapia ajuda a fortalecer a autoconfiança e a retomar o poder de decisão sobre a própria vida. A mulher aprende a impor seus limites em todas as relações interpessoais e acaba ficando mais próxima de amigos e familiares, fortalecendo essa rede de apoio”, explica a psicóloga Vanessa Gebrim.

    Ela e a psicanalista Kélida Marques ressaltam que, com frequência, vítimas de relacionamentos abusivos sentem vergonha de procurar ajuda profissional ou mesmo de pessoas próximas, mas lembram que “a conversa cura”. “Os impactos emocionais após uma ruptura desse tipo podem ser até mais dolorosos do que aqueles vividos durante essa relação. Há pessoas que sofrem alterações hormonais, gastroenterológicas e dores crônicas por conta das violências sofridas”, explica Kélida. Por isso, além da terapia, em si, ela recomenda grupos de apoio com pessoas que passaram por situações parecidas e estão em diferentes momentos de recuperação.

    Desejo de isolamento

    “Parecia que tinha uma faca entrando constantemente no meu peito. Mistura de de dor, angústia e saudade dele.” Assim Roberta descreve a montanha-russa de sentimentos que viveu durante dois anos após a separação. Ela também enfrentou a falta de ânimo para fazer qualquer atividade ou socializar minimamente, algo comum entre quem passa por esse tipo de trauma, de acordo com as especialistas ouvidas por CLAUDIA.

    “Os impactos emocionais após uma ruptura podem ser até mais dolorosos do que aqueles vividos durante a relação”, diz a psicanalista Kélida Marques.
    “Os impactos emocionais após uma ruptura podem ser até mais dolorosos do que aqueles vividos durante a relação”, diz a psicanalista Kélida Marques. (Reprodução/Pexels)
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    “A culpa, a raiva e a sensação de ‘não mereço ser feliz’ são frequentes nesse primeiro momento após a relação abusiva e desencadeiam o desejo de isolamento. Mas é importante não deixar que a vontade momentânea dite a ordem do dia”, orienta Kélida Marques. A psicanalista recomenda que sejam feitas coisas simples, como uma caminhada ou uma brincadeira com o pet, por pelo menos cinco minutos diários para, assim, evitar que a vítima se feche completamente. “Esses cinco minutos já dão a sensação de dever cumprido. Se você pode fazer essas atividades sem aquela pessoa abusadora na sua vida, pode fazer muito mais”, reforça.

    Quando a dor ameaçava sufocá-la, Roberta reunia forças e mandava mensagens para sua rede de apoio, pessoas que a amparavam e a distraíam. “Me obrigava a sair com amigos, mesmo com vontade de ficar em casa”, conta. De acordo com Kélida, gestos como esse podem ser mais eficazes do que, por exemplo, a meditação. “A cabeça está cheia de ruídos. Deve-se olhar para dentro, mas não ficar em silêncio. Mesmo que você escreva seus sentimentos numa folha de papel qualquer para nunca mais ler, é importante colocar para fora. E o papel não faz julgamento”, aconselha.

    Roberta dá o testemunho de que esse processo de recuperação está longe de ser uma linha reta. Era constante a sensação de “uma nuvem densa e pesada” pairando sobre ela
    quase todos os dias. Depois, vinha um dia menos pior, depois outro, depois outro… “Às vezes, achava que aquele desespero havia passado para sempre, mas ele voltava. Até que me libertei de vez”, compartilha.

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    Medo de amar

    Toda ruptura é um luto que pode ser ainda mais profundo para quem viveu uma relação abusiva, lembra a psicóloga Vanessa Gebrim. Ela conta que, na clínica, algumas pacientes estranham até mesmo a tranquilidade de uma nova rotina sem gritos, conflitos e violência. Um dos riscos, nesse caso, é a reincidência em novos relacionamentos tóxicos. Mas também é comum que mulheres que passaram por isso tenham receio de se abrir para novas pessoas ou acreditem que não são dignas de um amor saudável.

    Essa crença é mais uma cicatriz deixada pelos abusadores.

    Por conta de um problema de saúde na infância, Roberta tem uma sequela que compromete um pouco seu modo de andar. Isso nunca havia lhe gerado um problema de autoestima, mas seu ex transformou-o num ponto fraco. “Ele dizia: ‘Se você me deixar, nenhum homem vai te querer’, e eu acabava me sentindo grata por ele estar comigo”, lembra.

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    Hoje, ela se sente aberta a voltar a se relacionar, confiante de que as pessoas são diferentes e, portanto, nenhum relacionamento será igual ao outro. “Quando a pessoa consegue identificar o perfil de um abusador, fica mais difícil cair numa armadilha”, explica Vanessa. A psicóloga recomenda, no entanto, não sair de uma relação conturbada e logo engatar em outra. “Tome o tempo necessário para olhar e cuidar de si mesma.”

    Virar a página

    Roberta diz que quase não sentiu raiva do ex-marido, apesar de tudo. Sua psicóloga teve a missão de ensiná-la que estava tudo bem sentir isso também. Mas há pessoas que, depois de uma série de pequenas e grandes violências psico-emocionais (e até físicas), são consumidas pelo ódio e pelo desejo de vingança. É o caso de Ana, protagonista do romance Com Todo o Meu Rancor (Rocco), de Bruna Maia, que cria um plano sofisticado para dar o troco no ex, um cara pseudo-desconstruído que não passa de um abusador. Essa vingança ficcional envolve disfarces e identidades falsas, vigilância constante e intoxicação do esquerdomacho em questão. Na obra, raiva e sarcasmo são armas contra o machismo. “É sobre uma pessoa que se recusa a ficar apenas no papel de vítima e mostra que o ódio das mulheres também é legítimo”, explica a autora.

    Na vida real, no entanto, por mais que reconheçam a legitimidade desse sentimento, as especialistas explicam que o desejo de vingança é mais um sinal de que a vítima ainda não está conectada consigo mesma. “Essa pessoa continua presa num relacionamento abusivo, mesmo sem a presença do abusador”, diz Kélida Marques. “Sofra, mas estipule um prazo para reagir. Chore, grite, soque a almofada. Porém, depois de alguns dias, comece a virar a página”, recomenda. O conselho de Vanessa Gebrim é canalizar a força desse sentimento pesado em algo com o qual a pessoa se sinta bem e orgulhosa de si mesma, seja o trabalho ou outra atividade de sua escolha. Porque, como Roberta aprendeu, a melhor forma de vingança é ser feliz.

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