Como sentir menos ciúmes e evitar que ele se torne possessivo
Em uma sociedade que romantiza o ciúme possessivo, compreender e desconstruir o sentimento é passo essencial para relacionamentos mais equilibrados
O ciúme é normal, pois não estamos acostumados a perder. Vislumbrar a mínima possibilidade de perda pode ser o suficiente para nos desestabilizar. Quando acrescentamos o amor nessa equação, o assunto fica ainda mais sério. Como lidar com a possibilidade de quem estimamos ir embora? Como reagir quando, de maneira concreta ou apenas imaginada, a pessoa amada se interessa por outro alguém? Nessas horas, o ciúme dá as caras imediatamente. Mas por que experimentamos esse sentimento?
Segundo especialistas, as respostas estão tanto na natureza da psique humana quanto nas estruturas socioculturais que definem o que é o afeto. “Os bebês, mesmo que não tenham a estrutura do pensamento ou o ego formados, já apresentam sensações de ciúmes”, afirma a psicóloga Raquel Baldo.
Diferença entre ciúmes e possessividade
Esse ciúme, por sua vez, fala mais sobre um senso de preservação e cuidado do que sobre possessividade. “Em um estágio primário de nossa existência, a mãe se torna a figura que representa a vida, o aconchego, a segurança. Não há como não ter receio de perder algo tão importante”, diz Raquel.
Esse temor depois irá se repetir inúmeras vezes em toda a nossa trajetória, seja com amigos, familiares ou parceiros românticos. Mas o que dita o modo e a intensidade com que reagiremos frente ao ciúme é o que Freud define como “processo narcísico”. “A criança ocupa um lugar muito idealizado ao chegar na família, pois os adultos que a recebem irão colocá-la para realizar todos aqueles sonhos que eles não conseguiram alcançar”, diz Ana Suy, psicanalista, pesquisadora e autora do livro A Gente Mira no Amor e Acerta na Solidão. Ou seja, a infância simboliza o período em que formamos um primeiro raciocínio narcísico, por nos sentirmos extremamente especiais.
No entanto, conforme vivenciamos frustrações, se faz necessário desconstruir esse pensamento: “É aí que nos damos conta do quanto os adultos exageram, do quanto não somos tão importantes assim”, diz Ana.
O problema, segundo Raquel, começa quando não passamos por essa fase de desconstrução, deixando ideais narcísicos infantis ditarem as nossas ações na vida adulta. “Além da incapacidade de lidar com a perda, existe a necessidade de fazermos qualquer coisa para manter o outro. Nesse lugar de não suportar a falta, o ciúme ganha conotação de posse”, declara a psicóloga.
De acordo com Marília Moschkovich, professora doutora do departamento de Sociologia da FFLCH/USP, a possessividade, com toda essa origem psíquica e pessoal, acaba também sendo validada diariamente pelas engrenagens de uma cultura de base ocidental. “A colonização impôs o catolicismo na nossa sociedade, que por sua vez coloca a função da sexualidade como criar a ‘instituição família’”, afirma. E, para a instituição família tradicional sobreviver, é necessário que uma série de sentimentos e comportamentos (como o ciúme e a posse) sejam normalizados e romantizados.
“De certa forma, estamos autorizados a reclamar se o outro não for apenas nosso. Vivemos essa ideologia de que o casal precisa se bastar, estar juntos o tempo todo. Tudo precisa ser resolvido ali dentro”, diz Marília.
Mas sejamos sinceros: é impossível uma única pessoa atender a todas as nossas necessidades e expectativas. Quando, naturalmente, a pessoa amada busca algum aspecto da sua individualidade em terceiros, o ciúme surge. Esse conjunto de ações, segundo a socióloga, constrói uma noção de amor que é menos sobre solidariedade e companheirismo, e mais sobre fantasias e projeções. “Se queremos pensar em uma sociedade autônoma, parceira, solidária e livre, precisamos reconfigurar certos sentimentos também.”
Diminuindo o ciúme
Para Ana Suy, é comum que queiramos buscar a exclusividade romântica, pois é nesse desejo que reside a fantasia de nos tornarmos, novamente, aqueles seres tão especiais da infância. “O ciúme também é uma estratégia de restabelecimento narcísico, onde idealizamos a ideia de poder ‘descansar’ da constante batalha pela atenção do outro”, afirma. Porém, segundo a escritora, até mesmo dentro do relacionamento mais tradicional possível, nunca existirá o tal descanso absoluto.
Assim, para poder viver com mais tranquilidade, o caminho passa por tentar suspender as preocupações. O contrário, segundo Ana, geraria uma fixação desgastante. Para além disso, quando falamos em desconstruir o ciúme, falamos automaticamente em aprender a perder. “Mesmo que sejamos valiosos para alguém, o outro pode, sim, seguir a vida sem nós”, declara Raquel Baldo. É saudável ter isso sempre em mente, inclusive para ajudar a construir aquilo que é essencialmente seu, que não passa pelo outro.
Aceitar essa possibilidade é um processo doloroso — afinal, como vimos, o ser humano se entende vivo quando recebe o amor do próximo. “O primeiro olhar da mãe, o manejo materno… Todas as primeiras sensações da vida, o outro me ofertou. Essa sensação está gravada permanentemente em nós e, naturalmente, passamos a vida inteira buscando replicá-la”, diz a psicóloga. Contudo, é inevitável que, em algum momento, passemos pela frustração desse sonho.
A partir daí, vale relembrar: crescer a partir da perda é absolutamente possível. “O ciúme possessivo não precisa existir quando aprendemos a bancar quem somos. Quando reconhecemos que podemos nos auto satisfazer, cessamos a urgência de manter o outro a qualquer custo”, afirma. Controlar o ciúme passa, necessariamente, por reconhecer a individualidade de cada um.
Experimento prático
Para tornar tudo mais tangível, Marília Moschkovich propõe um exercício: tente ficar ao menos seis meses sem utilizar a palavra ‘ciúmes’ para descrever aquilo que você sente. “Acredito que essa palavra não tenha um sentido muito específico. Não conseguimos descrever exatamente o que nos incomoda por meio dela”, diz.
Ela explica que, quando topamos esse desafio, nos vemos obrigados a investigar o que estamos sentindo de fato: “Às vezes, pode ser insegurança, inveja, uma quebra de expectativas. Quando falamos em ciúme, acabamos responsabilizando apenas uma das partes.”
Essa provocação da socióloga tem como intuito promover um espaço de franqueza nas relações: “Que possamos contar um incômodo sem ser algo pesado. Mas, para isso acontecer, cada um deve olhar para si”. Para Marília, não há como comunicar um incômodo quando nós mesmos não compreendemos os próprios processos. “Especialmente em relacionamentos monogâmicos, baseados em um contrato de exclusividade sexual, é essencial saber diferenciar e mapear os sentimentos.”