Ninguém escapa do ciúme. Seja você o ciumento ou “quem o provoca”, todos já experimentaram esse sentimento. Entre suas manifestações, o ciúme retroativo é bastante comum e surge do desconforto de a pessoa amada ter vivido experiências amorosas ou sexuais antes do relacionamento atual. Mas será que é normal ter ciúmes do passado? E quais são os impactos disso?
O que é o ciúme retroativo e de onde ele vem?
Desde muito cedo temos contato com o ciúme. A ciência diz que somos apresentados a esse sentimento ainda bebês e que as nossas individualidades, experiências de vida e nosso contexto cultural moldam a forma como lidamos com esse sentimento e o grau de intensidade com que ele se manifesta.
E dessa combinação de fatores únicos surgem diferentes formas de sentir ciúmes. Uma delas é o ciúme retroativo, também conhecido como ciúme retrospectivo ou Síndrome de Rebeca.
A maioria das pessoas se incomoda com a ideia de imaginar o parceiro com alguém do passado, como um ex, mas o ciúme retroativo tende a ser mais intenso. Basta saber que o parceiro já beijou, se relacionou ou teve intimidade com outras pessoas para que sentimentos como raiva e tristeza venham à tona.
“O ciúme retroativo é alimentado por uma profunda falta de confiança, tanto no parceiro quanto em si mesmo. A pessoa teme que o passado do companheiro ainda influencie o presente, criando uma ameaça constante de traição ou uma comparação negativa com ex-parceiros”, explica Marilia Scabora, psicóloga e fundadora da Comunidade Tribo Mãe.
Muitas vezes, esse tipo de ciúme gera discussões baseadas em situações que ocorreram antes mesmo de o casal se conhecer, fortalecendo um ciclo obsessivo em busca de detalhes sobre o passado do parceiro — o que, com frequência, resulta em comportamentos abusivos.
E isso pode chegar a lugares bem sombrios. “Tentativas de isolar a vítima de amigos ou lugares que de alguma forma estão ligados ao seu passado, ou impor regras sobre o que ela pode ou não fazer com base em relacionamentos antigos são alarmes. Esse controle não só é injusto, mas também profundamente prejudicial à autoestima e à autonomia da pessoa“, afirma a advogada Mayra Cardozo.
Fantasiar cenas e criar cenários que nunca aconteceram passam também a ser comum, tudo em busca de encontrar a “verdade” sobre seu par antes de quebrar a cara com ele.
“Quem sofre com isso pode perguntar obsessivamente sobre relacionamentos passados, buscar por pistas em redes sociais, escavar perfis de ex-parceiros, ou focar intensamente nos detalhes da história”, segundo Maria Nogueira Maia, neuropsicóloga, psicanalista e host do podcast Na Sala de espera. O pior é que, nessa dinâmica, ninguém sai ileso: nem o ciumento, nem o outro ou o relacionamento.
Como os aspectos culturais influenciam no ciúmes retroativo
A advogada ressalta que o ciúme retroativo não é um comportamento isolado, mas está enraizado em crenças culturais que perpetuam a ideia de controle sobre a sexualidade feminina.
“Homens e mulheres são socializados em uma cultura que atribui ao homem o direito de dominar a mulher, incluindo sua sexualidade e história pessoal. Essa mentalidade cria um terreno fértil para o ciúme retroativo, pois se baseia na ideia de que o homem tem o direito de questionar, monitorar e julgar o passado da mulher, legitimando comportamentos abusivos”, afirma a especialista em gênero.
Ela acrescenta que essa lógica é reforçada pela idealização da pureza e da castidade feminina, que submetem as mulheres a expectativas irreais e opressivas.
“Essas crenças perpetuam a ideia de que a mulher deve justificar suas escolhas e experiências passadas para ser ‘digna’ de respeito e confiança em um relacionamento, o que é profundamente opressor e constitui uma forma de violência psicológica.”
Não por acaso, os direitos das mulheres muitas vezes foram ameaçados pelo passado que tiveram. Um exemplo é a desqualificação de vítimas de violência sexual com base em seu comportamento passado ou vida pessoal, segundo a advogada. Embora atualmente o STF tenha decidido que esse tipo de prática é inconstitucional, muitas não tiveram acesso à justiça assegurada por lei antes.
O impacto do ciúme retroativo
O ciúme retroativo é capaz de minar a confiança e a intimidade do relacionamento. “O parceiro que sente ciúmes pode se tornar excessivamente possessivo, controlador ou crítico, enquanto o parceiro que está sendo questionado pode sentir-se injustamente julgado ou sufocado. Esse ciclo pode criar distanciamento emocional, tensões frequentes e dificultar o desenvolvimento de uma conexão saudável”, segundo Marília.
Além disso, a obsessão com o passado impede que o casal desfrute do presente. “Quando o parceiro constantemente volta ao passado em busca de reafirmação e comparações, a energia investida nessas questões acaba por sufocar a relação”, alerta a psicóloga Tatiane Mosso.
Como lidar com o ciúme retroativo
Aceitar a possibilidade que o relacionamento acabe é uma maneira de lidar com isso. “Relacionamentos envolvem um certo nível de risco e incerteza. Não conseguimos manter controle de tudo o que nosso parceiro faz, e precisamos achar paz nisso”, acrescenta Maria. Além disso, é importante reconhecer que as experiências passadas de um parceiro são parte do que o tornou quem ele é hoje.
Tatiane ressalta ainda que, muitas vezes, o ciúme retroativo está enraizado em inseguranças pessoais. Trabalhar essas questões internas é fundamental, pois o parceiro atual não deve ser responsabilizado por experiências anteriores que não envolvem o relacionamento.
Quando ficar em alerta com o ciúmes retroativo
O ciúme retroativo ultrapassa limites quando se transforma em uma ferramenta de controle e manipulação. Questionamentos constantes, exigências de detalhes e o uso do passado como forma de humilhar ou culpar o parceiro são sinais de abuso emocional. A Lei nº 14.188/2021, que tipifica a violência psicológica, pode ser aplicada nesses casos, oferecendo proteção legal às vítimas.
“A legislação brasileira, incluindo a Lei Maria da Penha, reconhece a violência psicológica como uma das formas de violência doméstica, garantindo o direito de buscar proteção contra abusos emocionais. Quando combinados, comportamentos de vigilância, julgamento e manipulação criam um ambiente de terror psicológico que compromete a autoestima e a liberdade da pessoa. A legislação busca proteger as vítimas e oferecer recursos para que elas possam denunciar esses crimes e obter segurança”, diz Mayra.
“Quando o parceiro começa a questionar constantemente as escolhas passadas da outra pessoa, exigir detalhes sobre antigos relacionamentos ou usar essas informações contra ela, isso já é um sinal claro de abuso emocional”, comenta a advogada. “Esses comportamentos não são apenas abusivos, mas também ilegais, e as vítimas têm o direito de buscar proteção legal.”
Discutir ou não o passado?
Falar ou não sobre o passado amoroso dos pares é uma decisão de cada casal. No entanto, a comunicação franca e sempre respeitosa pode ajudar a lidar com sentimentos difíceis, e o ciúme não é exceção.
“Não há uma regra única. Discutir o passado pode ser útil para promover transparência e confiança, desde que ambos se sintam confortáveis com isso e que o propósito seja o entendimento, e não o julgamento. O que deve ser evitado é o uso do passado como arma, trazendo antigos relacionamentos como forma de comparação ou crítica”, indica a neuropsicóloga.
A curiosidade sobre o passado é natural, e discutir isso pode ser interessante para que você conheça mais o seu parceiro e entenda como ele aborda relacionamentos. Mas é preciso reconhecer se você vai saber lidar com essa conversa. Procurar ajuda profissional antes pode ser uma estratégia eficaz para lidar de forma mais saudável com o passado.
Assine a newsletter de CLAUDIA
Receba seleções especiais de receitas, além das melhores dicas de amor & sexo. E o melhor: sem pagar nada. Inscreva-se abaixo para receber as nossas newsletters:
Acompanhe o nosso Whatsapp
Quer receber as últimas notícias, receitas e matérias incríveis de CLAUDIA direto no seu celular? É só se inscrever aqui, no nosso canal no WhatsApp.
Acesse as notícias através de nosso app
Com o aplicativo de CLAUDIA, disponível para iOS e Android, você confere as edições impressas na íntegra, e ainda ganha acesso ilimitado ao conteúdo dos apps de todos os títulos Abril, como Veja e Superinteressante.