Juliana Amoasei, programadora de 40 anos, conheceu Fernando em um aplicativo de relacionamento e, desde então, já são cinco anos de namoro. Em 2019, ela começou a se relacionar também com Ricardo, de quem ambos já eram amigos, e, hoje, tem dois companheiros.
“Gosto de viver numa época em que tenho o privilégio de amar e me relacionar como quiser”, diz. Seu relacionamento tem um dos muitos arranjos possíveis propostos pela não monogamia – negação da monogamia, o padrão hegemônico que prega exclusividade afetiva e sexual entre duas pessoas. Mas não é sobre sair-ficando-com-todo-mundo, necessariamente. A própria Juliana acha isso cansativo.
“É algo que exige tempo e dedicação, e não tenho vontade de procurar mais ninguém. Deixo aberto para meus namorados saírem com outras pessoas, mas não me importo em saber”, conta.
A oposição à posse, a essa ideia de que o outro nos pertence, é um dos pilares da não monogamia, que não tem nada de “novo” ou de “moda”, como explica Geni Nuñez (@genipapos), ativista indígena e mestre em Psicologia Social, que pesquisa o tema há mais de uma década. “Antes dos colonizadores chegarem ao Brasil, essa era a forma mais comum de relacionamento entre os povos originários. A monogamia foi imposta pelo projeto jesuíta de catequização. Eles pregavam que o único verdadeiro casamento era o cristão.”
Para a pesquisadora, essa é a mesma lógica da propriedade privada: o amor seria uma espécie de mercadoria e outras pessoas seriam ameaças capazes de roubá-la. É, em suma, a ideia de que é impossível haver afeto, romance e vínculo com mais de um indivíduo. Geni ainda considera que esse sistema é especialmente desvantajoso para as mulheres.
“A monogamia promete fidelidade, compromisso, responsabilidade, mas, historicamente, essa promessa da exclusividade sexual não é cumprida, principalmente pelos homens. É um modelo desigual porque, através desse amor romântico, as mulheres se colocam em relações nas quais realizam trabalhos emocionais, domésticos e de cuidado não remunerado, enquanto eles se beneficiam disso”, diz.
A ideia de posse de outrem também está na raiz do problema do feminicídio no Brasil. O país registra um assassinato de mulheres a cada seis horas e meia, e 90% das vítimas foram mortas por companheiros ou ex-companheiros que não aceitavam o término.*
Amor político
Foi a negação de qualquer possessividade que atraiu Cah Fernandes, de 22 anos, para a não monogamia. Depois de dois anos com o namorado Wesley e de muitas leituras, ambos decidiram se relacionar também com outras pessoas. “No início, foi difícil, existe a sensação de perda da centralidade na vida do outro, do controle sobre o afeto e a sexualidade do outro. Mas, hoje, me considero não monogâmica também por uma questão política, por negar essas opressões que recaem principalmente sobre nós, mulheres”, conta.
Cah e Wesley vivem na mesma rua de Salvador (BA) onde ele cresceu e é conhecido por toda a vizinhança, o que trouxe um receio sobre a vigilância social – mas eles já desencanaram disso. O que persiste, porém, é o machismo de quem olha de fora. “Já ouvi mais de uma vez ‘que sorte a dele!’, como se eu não fosse sexualmente ativa ou não tivesse desejo por outras pessoas”, reclama Cah, que é bissexual. “É isso ou colocar o homem como ‘trouxa’ por ‘deixar a mulher dele’ se envolver com terceiros. Vivo em uma bolha de pessoas progressistas, mas, sempre que surge esse tema, parece que estou conversando com a geração da minha avó”, lamenta.
“A não monogamia é um exercício de construir outras formas de mostrar confiança e cuidado”
Geni Nuñez, pesquisadora
Para disseminar informação sobre o que é (e o que não é) a não monogamia, Cah cria conteúdos sobre o tema no @eta.nega onde fala com humor da tentativa de construir amores sem amarras. “Meu objetivo não é converter ninguém, mas incentivar o questionamento: isso realmente faz sentido para mim?”
E os ciúmes?
Camila Figueiredo, jornalista pernambucana de 30 anos, nunca gostou de ter ciúmes, um sentimento que sempre a deixou envergonhada. Já na adolescência, ela conheceu o conceito de “relacionamento aberto”, mas só aos 20 anos, no seu primeiro namoro com uma mulher, ela, que é lésbica, começou a experimentar uma relação sem exclusividade. Para Camila, no entanto, mais do que ficar com outras pessoas, a não monogamia é sobre revisar comportamentos e dinâmicas de romance e convivência.
“É sobre abrir portas para questionamentos e desafios ao que sempre esteve imposto. Por que eu me sinto dona do desejo da outra? Quais são outras formas possíveis de me relacionar? ”, explica ela, que também é co-fundadora da Diadorim, agência de jornalismo independente focada na defesa dos direitos LGBTQIA+.
Atualmente, Camila namora uma mulher que está recém familiarizando-se com essa ideia e, apesar de os ciúmes ainda estarem presentes, ela conta que as duas têm lidado de forma “tranquila”. “Sempre fui mais introvertida, então nunca fui de ficar com muita gente. As relações demandam muito de nós e eu sou particularmente preguiçosa. Nem cogito viver outras relações paralelas, por exemplo. No final, acho que os monogâmicos são mais transões que os não monogâmicos”, ri.
A vivência de Cah Fernandes com o namorado é diferente. “Nunca tive ciúmes em relação ao sexo, mas a questão do envolvimento emocional me pegava. Tinha medo de ser trocada, mas a gente vai conversando e entendendo que não fazem diferença as relações com outras pessoas desde que a nossa esteja bem. Sinto felicidade ao ver meu companheiro contente com outras pessoas”, relata.
Responsabilidade afetiva
Todas as mulheres entrevistadas nesta reportagem rebatem, taxativamente, o preconceito de que não há responsabilidade afetiva nas relações não monogâmicas. “Pensando o mundo a partir dessa perspectiva, exercemos, de forma mais ativa e consciente, a responsabilidade afetiva com todas as pessoas com quem temos laços, sejam românticos, familiares ou de amizade. É sobre tirar esses relacionamentos de uma pirâmide de importância”, argumenta Cah.
A “não hierarquização dos afetos” é, segundo a pesquisadora Geni Nuñez, algo intrínseco a esse “não modelo” de relação. “Deixar de classificar os afetos por ordem de importância é fundamental, mas isso não deve ser confundido com simetria. Não quer dizer que todas as relações são iguais, cada uma tem seu espaço e sua singularidade”, explica.
Geni ressalta que, quando se fala de confiança e responsabilidade para com o outro, o senso comum associa essas características ao acordo de exclusividade sexual. “A não monogamia é um exercício de construir outras formas de mostrar confiança e cuidado que não sejam obrigatoriamente abrindo mão da sua própria autonomia. A questão da redistribuição do trabalho doméstico e o uso do preservativo são só alguns exemplos.”
Para a pesquisadora, da mesma forma que ninguém diz que não consegue amar mais de um irmão, não deveria ser automaticamente descartada a possibilidade de se envolver romântica e sexualmente com mais de uma pessoa. “É uma provocação para que cada uma construa, da maneira que lhe for possível, a partir de suas seguranças e dificuldades, a forma de amar e se relacionar que melhor lhe couber”, diz.
Se tem carinho, cuidado e respeito, está tudo bem.